segunda-feira, 25 de novembro de 2024

JOSÉ LUIZ NUNCA DISSE NÃO

 Ruy Castro

José Luiz de Magalhães Lins nunca disse não a ninguém, do cinema novo aos militares. Banqueiro vivia entre empresários e políticos e levava uma dupla militância entre artistas e até jogadores, como Garrincha

Em quase todas as reportagens sobre a morte do ex-banqueiro José Luiz de Magalhães Lins, aos 93 anos, no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira, foi dito que ele bancou o empréstimo que tornou possível em 1964 a filmagem de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, um xodó da esquerda, e, naquele mesmo ano, participou da trama que levara à derrubada do presidente João Goulart pelos militares.

"Como pode?", perguntou um leitor na seção de comentários.

O leitor não sabia que essa participação consistira de, a pedido do apavorado general Castello Branco, José Luiz de Magalhães Lins convencer seu tio, Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e um dos conspiradores, a sustar as tropas mineiras que avançavam em direção ao Rio para depor Goulart —Castello achava que o golpe ainda não estava pronto e iria fracassar. Mas era tarde demais, as tropas já estavam a caminho.

Ironicamente, Castello Branco, recomposto, se tornaria o primeiro presidente da ditadura. E José Luiz de Magalhães Lins continuaria a emprestar dinheiro para os diretores do cinema novo, todos de esquerda.

Como banqueiro, no topo da hierarquia do Banco Nacional de Minas Gerais, José Luiz vivia entre empresários, políticos, generais e outros banqueiros. Mas levava uma deliciosa dupla militância, entre jornalistas, escritores, cineastas, homens de televisão e até jogadores de futebol —sempre no papel de quem assinava um aval para algum custoso empreendimento ou abria direto a carteira para pagar a conta.

E, nessa posição, era capaz de conciliar interiormente até partes em sangrento conflito —tanto podia salvar a Última Hora, de Samuel Wainer, de uma de suas constantes bancarrotas, quanto avalizar a dívida de milhões de dólares de Roberto Marinho para com o grupo americano Time-Life, saldada por Marinho no dia seguinte.

O governador da Guanabara, Carlos Lacerda não perdoava José Luiz de Magalhães Lins por ter sido o articulador da campanha do plebiscito nacional que, em 1963, devolveria a Goulart o poder presidencial, derrotando o parlamentarismo que os militares o tinham obrigado a aceitar para assumir a vaga deixada pela renúncia de Jânio Quadros. Lins participara da campanha com dinheiro e estratégia.

Lacerda se vingava atacando a ele e a Magalhães Pinto, seu rival como vivandeira dos generais. E todos sabiam como era Lacerda quando atacava alguém. Isso não impediu que, anos depois, Lins desse o aporte bancário que permitiu a Lacerda, ostracizado pelos militares, abrir sua editora Nova Fronteira. E por que não? Antes disso, Lins já socorrera Ênio Silveira, cuja editora Civilização Brasileira, associada ao Partido Comunista, fora alvo até de bombas por terroristas de direita.

Lins sempre gostou de conviver com a arte e a criação. Em 1961, seu amigo Otto Lara Resende intercedeu com ele para que o Banco Nacional ajudasse o fotógrafo Luiz Carlos Barreto, que começava a se aventurar no cinema, a produzir "Assalto ao Trem Pagador", ousado para os padrões da época. Lins fez isso, o filme foi um sucesso e ali começou uma fértil relação entre o banqueiro, supostamente um homem "do sistema", e uma nova geração de cineastas, todos de esquerda.

A agência central do banco, na esquina da avenida Rio Branco com a rua do Ouvidor, se tornou um endereço tão importante para eles quanto o do laboratório Líder, em Botafogo, onde montavam seus filmes.

Entre 1961 e 1966, Lins tornou possíveis grandes títulos do cinema novo —"Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, "Os Fuzis", de Ruy Guerra, "A Grande Cidade", de Carlos Diegues, "Menino de Engenho", de Walter Lima Júnior, e "O Padre e a Moça" e "Garrincha, Alegria do Povo", ambos de Joaquim Pedro de Andrade.

No caso deste último, a relação de Lins se estendeu ao próprio Garrincha, craque também em trapalhadas financeiras e várias vezes salvo por ele a rogo do jornalista Armando Nogueira, amigo de ambos.

Por causa de Lins, se descobriu que, em fundos de gaveta ou escondido em colchões, Garrincha tinha sem saber uma fortuna dos prêmios que recebera, em moeda local, nos muitos países em que jogara pelo Botafogo. Lins transformou tudo numa bela aplicação no Banco Nacional, que Garrincha, sem paciência para esperar rendimentos, desfalcou até zerar a conta.

Foi Lins quem tirou Garrincha de apertos com sua ex-mulher, Nair, cuja pensão de alimentos atrasava e só não foi preso porque, numa dessas, um cheque milagroso chegou ao juiz pouco antes de este ordenar que levassem o jogador.

Foi Lins quem intermediou a difícil pacificação entre Garrincha e a diretoria do Botafogo em 1963, escondendo o jogador com Elza Soares num sítio em Santa Cruz enquanto negociava um contrato melhor para o atleta —e os protegia da fúria da torcida, que acusava Garrincha de mercenário e culpava Elza.

E foi Lins quem convenceu Garrincha a abandonar as rezadeiras e operar seu joelho cronicamente estourado com um especialista. Não apenas isso, como Lins pagou a cirurgia e acalmou o Botafogo, este revoltado por Garrincha ter se operado com um médico de fora do clube. Lins fez tudo isso apenas por Garrincha, porque nem sequer torcia pelo Botafogo —era América.

Outra admiração que dava trabalho a ele era Nelson Rodrigues. O dramaturgo não só tinha sempre uma montanha de "papagaios" (promissórias) a vencer no Banco Nacional, como pedia favores para filhos e amigos.

Foi Lins quem garantiu a produção de "A Falecida", filme de Leon Hirszman baseado na peça de Nelson e, embora jurasse que nenhum dos filmes que financiou o tinham feito perder dinheiro, este foi um —porque Hirszman desidratou a história de todo o humor carioca de Nelson, transformando a coisa num drama sueco. Outro tiro em falso foi "Garrincha, Alegria do Povo", porque Joaquim Pedro de Andrade fez um filme para quem gostava de cinema, não de futebol.

Mas nada tisnava a paixão de José Luiz de Magalhães Lins por Nelson. Dois empreendimentos de Joffre, filho do escritor, foram bancados por ele —um restaurante, Cartum, na Tijuca, e uma casa de espetáculos, O Bigode do Meu Tio, em Vila Isabel, este só menor que o Canecão. Ambos fracassaram.

Lins financiou um apartamento para Nelson num edifício em construção nos altos do Leblon, de que Nelson se arrependeu quando ficou pronto e ele descobriu que iria morar no equivalente a um 50º andar. Nelson não sossegou enquanto não o vendeu para um jornalista, também com o aval de Lins. E Lins perdoava Nelson até quando ele tomava assinatura com seus melhores amigos —um deles, Armando Nogueira.

Inconformado com a admiração de Nogueira pelo futebol europeu, principalmente a seleção da Hungria de 1954, Nelson levou anos se referindo ao "escrete húngaro do Armando Nogueira", quase fazendo disso um apêndice ao nome do jornalista. Nogueira se queixou a Lins, e este pediu a Nelson que parasse com aquilo. Pela quantidade de favores que devia a Lins, Nelson concordou. E passou a escrever diariamente sobre o "ex-escrete húngaro do Armando Nogueira".

A figura de um ministro ou secretário da Cultura ainda não existia no Brasil. Pois José Luiz de Magalhães Lins foi o equivalente a um deles, com a diferença de que o dinheiro saía do seu bolso.

Por volta de 2000, ele me chamou à sua casa na rua Icatu, fabulosa pela arquitetura, pela mata em volta e pelas obras de arte, e me convidou a escrever sua biografia. Explicou que "não era para ser publicada, mas para que, um dia, seus netos o conhecessem melhor". A proposta era muito boa. Além disso, eu o admirava e seria um trabalho fascinante. Mas, baseado no princípio de que não devia aceitar encomendas nem biografar gente viva, delicadamente recusei.

E só agora me dou conta do que deve ter representado esse "não" para um homem que nunca tinha dito "não" a ninguém.

Fonte: Folha de S. Paulo - 5.fev.2023

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