segunda-feira, 14 de outubro de 2024

BEIJOS PROIBIDOS

Ruy Castro

O pessoal do cinema e do teatro sempre se beijou com a maior naturalidade, em cena ou fora dela. Mas há casos patológicos

Neal McDonough, conhecido ator americano na praça, declarou outro dia quenão aceita papéis em que seja obrigado a beijar a mocinha. Disse que beijar alguém contraria sua religião. "Sou bem religioso", explicou. Espero que, como ele é casado, a religião não o proíba também de beijar sua mulher. Um papel em possíveis refilmagens de "Deep Throat", "Último Tango em Paris" ou "Emmannuelle", ousadias dos anos 1970, nem pensar.

Atores e atrizes de teatro e cinema sempre se beijaram com a maior naturalidade em qualquer época, em cena ou fora dela. Faz parte da profissão, assim como aprender a decorar falas ou saber vestir um smoking. Os principiantes, talvez mais tímidos, são ensinados a dar o chamado beijo técnico, com, digamos, um carinhoso dedo entre os dois lábios. Se bem dado, a plateia não o distingue de um beijo de verdade.

Mas há outros casos patológicos como o de McDonough. Em 1957, na montagem original de "Viúva, Porém Honesta", peça de Nelson Rodrigues, Ivonete, interpretada por Dulce Rodrigues, irmã do autor, era beijada pelo cafajeste Diabo da Fonseca, vivido por Jece Valadão. No primeiro ensaio, em vez de aplicar-lhe o beijo técnico, Jece foi com realismo à boca de Dulce. Ao fim do ensaio, Dulce —tão rodriguiana quanto as personagens do irmão— lhe comunicou: "Jece, depois desse beijo, vamos ter de casar. Foi quase um defloramento público!". Jece se espantou, mas, para surpresa de todos, principalmente dele, aceitou. Casaram-se e não foram felizes para sempre.

Outro que, ao contrário, fez do beijo uma declaração de guerra foi o incorrigível Paulo Cesar Pereio, num celebrado filme dos anos 1980. Irritado com a estrela, a maior do cinema brasileiro na época e com quem estava às turras na filmagem, preparou-se para a cena de beijo que teriam de rodar dali a minutos. Mastigou uma cebola inteira, crua. A estrela se indignou, mas, com o trabalho atrasado e, talvez, a cumplicidade do diretor, o beijo com cebola teve de ser dado ali mesmo, e em quantos takes foram necessários.

McDonough só não pode beijar. Atirar, fuzilar, matar, sua religião não tem nada contra.

Fonte: Folha de S. Paulo

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