Luiz Felipe Pondé
Um anarquista percebe a baba que escorre pela boca das autoridades no exercício do seu monopólio legítimo da violência
Como identificar se você tem uma costela anarquista? Coisas assim são boas de você saber para não passar vergonha por aí caso você se sinta mal diante de certas situações com as quais a maioria das pessoas não sofre uma vírgula. Nem ficar com água na boca diante de ministros.
Fui anarquista na juventude. Simpatizante de Bakunin (1814-1876), sempre gostei da ideia de que todo Estado é mau.
Com o tempo, óbvio, aprendi que o erro central das teorias anarquistas está na sua compreensão de natureza humana irrestrita, seguindo a teoria de Thomas Sowell, ou seja, uma natureza humana perfectível ao infinito em direção à bondade social e política.
Autores como o príncipe Kropotkin (1842-1921), também anarquista, mas de uma geração mais jovem do que Bakunin, geógrafo de formação, também incorreu no mesmo equívoco: se iludir com a natureza humana.
Essa ilusão se caracteriza por crer que uma vez removido o Estado opressivo e eliminada a propriedade privada —vale salientar que se trata aqui do anarquismo socialista russo—, a autogestão dos povos marcharia em direção a um novo homem e uma nova mulher —essa divisão hoje já seria considerada reacionária, não?— marcados pela generosidade, coragem, e capacidades cognitivas abundantes.
A pergunta é: como gente inteligente conseguiu um dia crer em tamanha besteira? Aliás, ainda hoje tem gente que crê. Claro que se for homem, o faz para pegar mulher —no tempo que isso estava na moda.
A natureza humana, manifesta na história empírica, não autoriza jamais uma crença como esta. Trata-se de pura pseudociência, ou, diria eu, pseudopolítica.
Os anarcocapitalistas tampouco se saem melhor ao acreditarem que, uma vez suspensa a opressão burocrática e policial do Estado, as pessoas e as empresas competiriam dentro do espírito de não-agressão e respeito mútuo.
Não sei quem seria o mais idiota nessa crença num ser humano bom, que, na verdade, a toda hora, prova estar sempre preparado para ser egoísta e competitivo de modo cruel.
Percebe-se um problema após estas breves observações. Como fica uma pessoa de simpatia anarquista, mas que não sofre desse profundo equívoco cognitivo, ou seja, que não acredita nas bobagens nem dos anarquistas socialistas nem dos anarcocapitalistas acerca da natureza humana?
Dito de outra forma, e seguindo de novo Thomas Sowell, alguém que sabe que a natureza humana é restrita e pobre em recursos morais e políticos, exatamente o contrário do que afirmam o marketing e as utopias, igualmente.
Antes de tudo, esta pessoa aceita, com tristeza, que o Estado é um mal necessário. Mas, sempre odiando-o e desconfiado de que a qualquer hora ele virá na sua direção para depená-lo, calar sua boca, inviabilizar sua vida. Alguém que carrega em si uma costela anarquista jamais confia nas autoridades do Estado porque percebe a baba que escorre pelo canto da boca de uma autoridade no exercício do seu monopólio legítimo da violência.
Quanto mais salamaleque no exercício institucional desse poder, maior o risco. Qualquer autoridade que possa te destruir com um clique —principalmente quando errado— não deve ser jamais de confiança.
Uma outra inimiga mortal de um anarquista, desde os tempos dos utópicos, é a burocracia. Ah! A burocracia! Jean Delumeau, no seu "História do Medo no Ocidente", que saiu pela Companhia das Letras, suspeita que a burocracia surge como descendente dos muros das cidades. Caem os muros, ergue-se o monstro da burocracia.
A burocracia está intimamente ligada ao medo. Incompreensível no seu gigantismo inacessível —Kafka, o profeta—, com seus capatazes —os burocratas—, a burocracia existe para dizer "não". Para fazer de você um escravo dela; para destruir qualquer esperança na beleza. O burocrata, assim como o advogado, é a provas definitiva de que o mundo e as pessoas não são de confiança.
Mas, de que adianta uma costela anarquista hoje? Adianta, antes de tudo, para não deixar você cair no ridículo de se fazer fã de qualquer autoridade do Estado e saber que ela nunca será de confiança.
Fonte: Folha de S.Paulo
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