A morte é um ponto final tranquilo, mas nós, os velhos, somos vistos como resíduos e não contamos mais
A antropóloga Mirian Goldenberg fala de morte simbólica.
A questão é que ela chega de mansinho. Essa pré-morte a que chamam de velhice.
Não se percebe. Atingimos uma plenitude perto dos 20 anos e temos a impressão de que isso permanece com levíssimas perdas durante décadas. Depois, tudo se acelera. Nada muito dramático, mas, enfim, acabamos por notar que um ano ou dois fazem diferença. É como a transformação na adolescência, mas no sentido contrário: ao invés de avançarmos para mais energia, para maior domínio das coisas, como os jovens que vão para a idade adulta, recuamos para perdas progressivas que preparam o término.
Generalizo aqui a partir da minha experiência pessoal. Caminho para os 76 anos em boa forma, não há do que me queixar. A cabeça continua razoável, o corpo acorda com dorezinhas nas costas que um alongamento leve resolve. Nada dramático.
Mas sou um velho. Sou um pré-morto. Descobri isso não pelo meu olhar no espelho, mas por um choque burocrático. Aposentei-me no ano passado de meu trabalho em uma universidade estadual. Foi sem trauma e com a perspectiva de poder me consagrar mais tempo à pesquisa, à orientação de teses, aos prazeres da música, do cinema, dos livros, da arte. Sem dúvida, neste país, sou um privilegiado.
Porém, recebi um email muito amável de um funcionário da universidade. Estava atrasado no meu cadastramento e, se não atualizasse imediatamente, não receberia minha aposentadoria no fim do mês.
Fiquei perplexo. Que cadastramento? Revirei a internet, os sites da Unicamp, não achei nada. Enfim, liguei para o funcionário que me explicou, sempre com muita delicadeza, que eu deveria fazer "prova de vida".
"Prova de vida?"
"Sim, comparecer ao seu banco ou vir até aqui para comprovar que o senhor está vivo."
Fui até lá. Ele me viu, me identificou, verificou. Eu estava vivo. Em seguida, me informou que eu deveria fazer isso todo ano. No mês do meu aniversário.
O aniversário virou assim uma indicação de prazo obtido a mais numa sobra de vida. Se eu tenho que fazer prova de vida, é porque ainda não estou morto. Ainda.
É uma evidência muito banal: todos nós ainda não estamos mortos e um dia o seremos. Mas a presença da morte é muito maior quando chegamos perto do fim. O advérbio "ainda" passa a ter cada vez mais peso na frase, que a administração acentua brutalmente. A aposentadoria, desse modo, passou a significar a espera do fim e uma tolerância condescendente em relação ao velho por ele ainda estar vivo. Quando eu morrer, a indiferença administrativa encerrará um processo que será enviado para algum arquivo.
A questão, aqui, não é nenhum pavor da morte, que felizmente eu não tenho. A morte é um ponto final tranquilo. O caso é outro: a mudança de percepção que ocorre em relação aos velhos. Como nós, os velhos, nos tornamos resíduos, não contamos mais.
Já que estou exprimindo aqui impressões e sentimentos que são pessoais, seria injusto para com os meus colegas de trabalho não mencionar que eles me aceitaram como professor e pesquisador colaborador. Permitem, dessa maneira, que eu possa continuar dirigindo teses e eventualmente dando algumas aulas. Fico-lhes grato por isso. Apresso-me a dizer, para cortar rente algum espírito malévolo, que faço esse trabalho pelo prazer, sem ter remuneração nenhuma por isso.
Sou grato também às leis que, neste país, e não é o caso de todos, dão prioridade aos velhos nas filas, reservam vagas em estacionamento. Quando fiz 60 anos, passei a ter esse direito e me sentia usurpando vantagens indevidas. Não hoje, quando estou chegando aos 76. O corpo se cansa mais e fica feliz em ser poupado.
No entanto, existe ainda uma educação coletiva a ser feita em relação aos velhos.
A qualidade da experiência, que se atribui aos mais velhos, ficou muito abalada com a evolução tecnológica que nos tornou vinculados à computação e à informática. Muitos velhos têm dificuldade diante dessa tecnologia e dependem dos jovens, tão hábeis em lidar com tudo isso. Que sabedoria de vida os velhos podem passar para a mocidade que vive num mundo tão completamente diverso daquele que foi o deles?
Ocorre que os velhos de fato adquirem conhecimento e experiência ao longo de suas vidas, o que lhes permite oferecer percepções e intuições baseadas naquilo que viveram: abrem perspectivas diversas daquelas que os jovens possam ter. Ok, não é porque um ser humano se torna velho que ele se transforma automaticamente num sábio. Nem esse papel de guru com barbas e cabelos brancos parece muito simpático. Mas a velhice é diferente da juventude, e nós só aprendemos com as diferenças. Nos dois sentidos —do vetor velho-jovem e do jovem-velho— a relação é frutuosa.
Os velhos têm uma longa memória. Sempre achei significativo que, quando, na velhice, ocorrem perdas das lembranças, elas, no mais das vezes, são de atividades imediatas: as mais antigas se preservam. Quem viveu muito possui uma história preciosa, que pode ser transmitida como elementos de uma cultura próxima e pessoal.
Conhecer o passado não passa só pelo caminho dos compêndios de história; estes falam apenas de situações coletivas e gerais. Os depoimentos —como se lê, por exemplo, em "Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos", de Ecléa Bosi, admirável livro que reúne testemunhos pessoais de vida— são muito preciosos. A memória do que foi vivido no passado ensina a compreender o que se vive hoje.
Os velhos significam uma crescente massa de consumidores, e o mercado os vê com olhos de lobos. Mas o mercado não quer saber de riscos e trata os velhos como consumidores de segunda classe. Na minha idade, contratar um novo plano de saúde se torna uma proeza; tudo o que significa pagamento a médio prazo é dificultado para quem chegou à velhice. Os bancos não se constrangem em recusar empréstimos ou cartões de crédito para quem está velhinho.
Penso nos grandes criadores produzindo durante a velhice. A música talvez seja a arte que tenha os melhores exemplos: Verdi compondo duas estupendas obras-primas: "Otello", com 74 anos, e "Falstaff", com 80; Wagner, "Parsifal" com 69. É elevado o número dos grandes intérpretes musicais que chegaram, em plena atividade, aos 80, 90: Mieczyslaw Horszowski deu seu último recital de piano quase aos cem anos; Magda Tagliaferro tocava admiravelmente com 90.
Ticiano e Michelangelo, octogenários, produziram obras admiráveis no anoitecer da existência. Romancistas, filósofos, cineastas (Clint Eastwood, com mais de 90 anos!), poderiam se ajuntar à lista. Eastwood, aliás, no ano 2000, com 70 anos, realizou uma reflexão profunda sobre o caráter indispensável dos velhos em seu filme "Cowboys do Espaço".
A morte, quando chega no fim da vida, não é dramática. O sofrimento sim, sem dúvida, mas a medicina mostra-se cada vez mais capaz de aliviá-los. A eutanásia é uma bela saída, quando viver tornou-se por demais difícil. Infelizmente, ir para a Suíça, a Bélgica, o Canadá, alguns estados dos EUA, a Colômbia, por exemplo, onde essa escolha é possível, custa caro demais para muita gente. Outros países, por uma sacralização estúpida, querem que a vida se prolongue a todo custo.
Sempre me espanto com a quantidade de gente que vive querendo meter o bedelho na vida dos semelhantes, pretextando critérios morais abstratos e infames.
Seja como for, a velhice emerge pouco a pouco, enlaçando lembranças. Os cabelos de prata, como a Lua, combinam com o momento noturno da vida; a pele, marcada por sulcos, é como que lavrada pela memória. Esse rosto marcado eu vejo no espelho, mas o espelho não me engana. Eu sei que o amanhã também é para mim.
Fonte: Folha de S.Paulo
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