Ruy Castro
Os dados inúteis com que somos obrigados a conviver
Em 1878, Sherlock Holmes e o Dr. Watson se conheceram em Londres. Os dois se deram bem, decidiram dividir o aluguel de um apartamento na Baker Street, 221-B, e, com algumas semanas de convivência, Watson pôs no papel sua impressão sobre os conhecimentos do colega. Exemplos: "Literatura: zero. Filosofia: zero. Astronomia: zero. Política: escassos. Botânica: variáveis —conhece a fundo a beladona, o ópio e os venenos em geral. Química: profundos. Literatura sensacionalista: imensos —pode descrever em pormenores todos os horrores perpetrados neste século." Mas o choque de Watson foi descobrir que Holmes nunca ouvira falar em Copérnico e não sabia que a Terra girava em torno do Sol.
"E daí? Se girássemos em torno da Lua isso não faria a menor diferença para o meu trabalho", respondeu Holmes. "O cérebro de um homem é um sótão que ele deve mobiliar com o que precisa. Um tolo atulha-o com qualquer traste que encontre e, com isso, os conhecimentos úteis ficam soterrados. É fundamental não ter dados inúteis ocupando espaço e dificultando o acesso aos úteis." Confira em "Um Estudo em Vermelho", primeiro livro de Conan Doyle sobre Sherlock.
Digamos que Holmes estivesse certo. O que fazer com a miríade de dados que hoje somos obrigados a reter sob pena de nos tornarmos inviáveis? Refiro-me às senhas que agora se exigem para tudo e sem as quais não se pode fazer mais nada. Outro dia, uma amiga me listou as senhas que ela teve de decorar.
As senhas do Gmail, Wi-Fi, Facebook, Twitter, iCloud, Team Viewer e Apple Store. A senha para administrar seu site e a senha do seu canal no YouTube. As senhas dos cartões de crédito. As senhas de suas contas em bancos e dos respectivos aplicativos. As senhas do supermercado, da pet shop e da Brastemp. E, como ela não é de ferro, as senhas do Globoplay, Netflix, Mercado Livre, Magalu e L’Occitane. Haja sótão.
Fonte: Folha de S. Paulo
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