Ruy Castro
Com o povo na horizontal ou no maior barato, era mais fácil passar a boiada
Ouvi essa história em primeira mão. Em 1972, um colegial matando aula na praia de Ipanema tocava em sua flautinha doce, moda na época, uma música que estava estudando: o Hino Nacional. Às primeiras notas, uma sombra surgiu ao seu lado. Era um homem de certa idade, óculos Ray-Ban, cabelo à escovinha e cara fechada. "Por que está tocando o Hino, garoto?", rugiu. "Está querendo provocar?". Militar, claro. Em plenos anos Médici, o Hino Nacional, tocado obrigatoriamente nas escolas e repartições, era sagrado. Um garoto ensaiando-o baixinho na praia só podia ser provocação.
Enquanto isso, a poucos metros dali, em meio às dunas formadas pela areia despejada na praia para a construção de um emissário submarino, a turma do cinema, teatro, poesia, música popular e agregados fazia a sua revolução de sexo, drogas, rock ‘n roll, cabelo, comida natural, astrologia e demais itens da contracultura. Era a "república independente do Píer", que existiu de 1970 a 1973 e teve como musa sua mais ilustre frequentadora: Gal Costa. Daí, as "dunas da Gal".
Há pouco, a morte de Gal trouxe de volta a memória daquele tempo e não faltaram artigos românticos na imprensa falando das dunas como "um oásis de liberdade", um eterno verão, em que era proibido proibir. Só não perguntaram como foi possível toda aquela liberdade na fase mais dura da ditadura.
É uma pergunta a se fazer aos militares daqueles anos. Pelo visto, ocupados com censurar, prender, torturar, matar e sumir com os que os combatiam de arma na mão, eles achavam besteira perder tempo com um pessoal só a fim de queimar um fuminho e que pregava fazer amor, não guerra —muito menos guerrilha.
Por acaso, na mesma época, os militares estavam dando toda espécie de apoio, assessoria e até financiamento a uma nova mania: os motéis. Com o povo na horizontal ou no maior barato, era mais fácil passar a boiada.
Fonte: Folha de S. Paulo
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