Wilson Gomes
Em tempos nos quais a estima social importa, vale mais estar errado do que sozinho na interpretação de textos
Há um novo tipo de consumidor de jornais na área. Surgido no curso da transformação digital, ele se caracteriza antes de tudo por fazer pouca distinção com a origem do que lê.
Diferenças de deontologia e objetivos entre editorial, reportagem, coluna de opinião, "textão" de outro usuário ou artigo científico não lhe dizem muita coisa. É tudo "conteúdo", consome-se com o mesmo espírito, reage-se do mesmo jeito.
No passado, a comoção ou a indignação que se seguia à experiência da leitura raramente alcançavam o autor. E apenas se houvesse um esforço, por cartas, por exemplo, na tarefa de comunicação dos sentimentos gerados pelo texto.
Já o novo leitor tem recursos de baixo custo e poucas exigências para esfregar na cara do autor as ideias ou as emoções que lhe visitaram no ato da leitura antes mesmo que ela se concluísse, se é que se conclui.
Não há tempo para que a interpretação se consolide, a leitura assente, as ideias se arrumem, as emoções amadureçam; não há nem sequer preocupação com o valor de verdade ou o apuro gramatical do comentário feito: urge fazer o autor, o veículo e o mundo saberem o que o texto me fez pensar.
O novo leitor, sabe-se, é ao mesmo tempo consumidor e produtor. Na expressão de Alvin Toffler, é um "prosumidor". Há quem prefira alterar os termos: não é a era do "prosumer" —produtor-consumidor—, mas do "produser" —produtor-usuário—, pois o que temos é um usuário de informação.
O novo consumidor lê, ouve, assiste ao noticiário e já o elabora, quer dizer, avalia, compartilha, recomenda, critica, comenta e marca. É basicamente alguém que usa reportagens e colunas, trabalha sobre eles e, assim, os entrega a um novo ciclo de usuários que continuarão em moto contínuo a atividade de releitura, reenquadramento e reedição do conteúdo, até que se esgote a curiosidade social no assunto.
A reportagem e a coluna originais não passam de obra aberta a ser editada por várias mãos em sucessivas reelaborações, uma matéria-prima a ser manufaturada por sucessivas redes de usuários. O conteúdo publicado não tem dono nem sentido objetivo, cada um se sente livre para interpretá-lo como quiser ou puder.
Complicado? Então some a isso o fato de que o novo leitor se entende neste momento como um guerreiro de alguma causa moral. Assim, é hipersensível aos temas sobre os quais milita e é intolerante a fatos e ideias que lhe pareçam contrariar suas convicções. Até mesmo hesitações e paradoxos, ou o reconhecimento de que há desacordos morais legítimos, causam-lhe mal-estar. Para o novo leitor militante, todo texto deve ser visto como um movimento de tropas numa zona de guerra moral e política. E assim deve ser tratado.
Como qualquer ativista, o novo leitor superestima o efeito de fatos e ideias sobre terceiros, e acha que estes, por não serem safos e competentes como ele é, são presas fáceis do que se publica por aí.
A sua inclinação natural é tomar providências para evitar que eles sejam expostos à mensagem errônea. E quanto mais o conteúdo é divergente do que ele pensa, maior será o efeito nocivo que ele estima em terceiros e maior o seu empenho para evitar isso. Como? Trabalhando sobre o conteúdo que considera errado, revelando a incompetência ou a desonestidade da fonte, ou, quando não lhe parece bastar, apoiando a censura.
Por fim, o novo leitor é um intérprete que mais infere do que decodifica, pois na urgência moral em que se localiza não pode perder tempo lendo, refletindo, compreendendo. Buscará deixas, pistas por meio das quais tomará a decisão sobre a distância moral entre o que ele acredita ser o correto e o que consta na publicação.
É por isso que, no online, quem escolhe o título, o subtítulo e a ilustração da reportagem ou coluna têm muito mais poder do que quem as escreve, uma vez que serão esses os elementos usados pelo novo leitor para decidir de que lado da guerra moral está o texto, o autor ou o veículo. E para tomar as providências que considerar cabíveis.
Às vezes, nem inferir é preciso, pois já se chega ao conteúdo respondendo a uma convocação feita pelos vigilantes do próprio grupo para uma expedição punitiva. Nesse caso, a abordagem já começa com o pé no peito, posto que a voz do rebanho lhe poupou o trabalho de leitura e os riscos de uma interpretação que considere o que o texto diz.
Parafraseando Noelle-Neumann, quando a estima social nos é muito importante, mesmo na interpretação de textos é melhor estarmos errados do que estarmos sozinhos. O autor que lute.
Fonte: Folha de S.Paulo
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