Jaime Pinsky*
Ao contrário do que muita gente pensa, a cultura não é monopólio dos mais ricos, nem dos mais poderosos. Não estou falando de cultura vista como qualquer produto material ou imaterial de uma sociedade, mas cultura no sentido mais restrito, manifestada, principalmente, pelas artes como música, literatura e pintura. Como dizia um esperto empresário e apresentador de TV, nesse sentido mais restrito não se deve confundir cultura com entretenimento. Aquilo que você vê na TV, relaxado em sua poltrona predileta, não é cultura, não é uma manifestação superior e refinada do gênero humano, mas um produto comercial. Mesmo assim (ou por isso mesmo), insisto em que a cultura não olha para o tamanho de contas bancárias.
Afirmação populista? Não. Fatos contemporâneos e o testemunho imparcial da história estão do meu lado: não há uma relação direta, determinista, entre dinheiro e refinamento cultural. E um excelente exemplo é o que aconteceu em Roma.
Sim, na poderosa Roma dos exércitos imbatíveis, a Roma que conquistou o sul da Europa e o norte da África, dando-se ao luxo de utilizar o Mar Mediterrâneo como se fosse um lago dentro de sua propriedade. Pois essa mesma Roma, que submeteu gregos e bretões, que construiu estradas e aquedutos, arenas e edifícios magníficos, essa mesma Roma tinha em suas bibliotecas públicas e particulares a maioria de livros em língua grega, não em latim. Não na língua dos vencedores, mas na dos escravizados. A cultura mais refinada, as peças de teatro e os textos filosóficos, até mesmo os livros infantis, durante muito tempo eram escritos em grego por gregos, escravos ou libertos. A orgulhosa Roma teve um rompante de humildade ao reconhecer que o saber mais profundo, a filosofia e a literatura não podiam existir no Império sem a cultura desenvolvida por séculos na Grécia ou em regiões helenizadas. E, não só, mas principalmente nos primeiros séculos de Império, o saber era coisa dos subalternos, não dos dominantes. De pobres, não de ricos.
Imaginar que, na formação do povo brasileiro, os ricos entraram com cultura sofisticada e os pobres com bobagens bregas pode ser tentador para novos ricos, mas não encontra suporte na realidade. Fico pensando se aquele jogador de futebol brasileiro que prometia ser um dos grandes, do tamanho de Messi ou Pelé, aquele que ganha mais para entrar em campo por uma equipe francesa do que um trabalhador brasileiro recebe durante sua vida inteira (é só fazer as contas), fico pensando se ele aproveita seu dinheiro para se cercar de professores capazes como Leandro Karnal ou Pondé. Se gente como esses mestres é chamada para discutir Filosofia e História; se a música de fundo é Bach ou Beethoven, ou mesmo Chico Buarque e Antonio Carlos Jobim... Sabemos que isso não acontece, seus milhões – e os de muitos milionários – não o encaminham a usufruir do patrimônio cultural da humanidade. Enquanto isso, o maestro Isaac Karabtchevsky montou uma boa orquestra sinfônica com meninos e garotas da Favela de Heliópolis, em São Paulo, com poucos recursos, mas suficientes para colocar em ação o talento de uns e a generosidade de outros.
Tentar estabelecer relação entre sensibilidade artística e poder financeiro é bobagem. O dinheiro pode facilitar o acesso a bens culturais, da mesma forma que facilita o acesso a produtos luxuosos em geral. Mas dinheiro não cria talentos nem desenvolve sensibilidades. E o fato é que, nas sociedades atuais, famílias ricas preocupam-se mais em ter filhos com talento para administrar bens do que para executar, ou mesmo ouvir e apreciar, um concerto de piano de Rachmaninoff. Bolsas de grife emocionam, com frequência, os consumidores endinheirados muito mais do que a leitura de um bom livro. E, sinceramente, meu amigo ricaço que equivocadamente está me lendo, você é mais chegado a um carrão do que a uma exposição de pintores do impressionismo francês. E, até como cinéfilo, você prefere rever um besteirol no canal de assinatura de sua TV do que filmes de importantes diretores como Truffaut, Woody Allen, Bergman ou Fellini.
A questão é que gente pobre não tem acesso a bens culturais porque não tem dinheiro para fazê-lo. Não quer dizer que, se tivessem como ter acesso, todos os pobres se interessariam pela cultura, mas isso, como vimos, também não ocorre com os ricos. Em suma, é papel do Estado oferecer bens culturais importantes a toda a população e não privá-la alegando que pobre não tem bom gosto e rico não precisa de estímulo. Como em qualquer outra área, aparecerão pessoas talentosas, para seu próprio bem e para o bem do Brasil. Ricos ou pobres.
*Jaime Pinsky, professor titular da Unicamp, doutor e livre-docente da USP, fundador da Editora Contexto
Fonte: Correio Braziliense
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