Rubem Alves
Minhas netas: Hoje quero que vocês me respondam uma pergunta: o que é que vale mais, o cheio ou o vazio? Ah! Pergunta boba! Todo mundo sabe que o que o cheio vale mais que o vazio. Quem gostaria de receber uma caixa vazia como presente de aniversário? O que a gente quer é uma caixa cheia. É o cheio que vale. Tanto assim que o cheio custa dinheiro. Mas o vazio não custa nada. Ninguém compra o vazio.
Parece óbvio que o cheio vale mais que o vazio… Mas será mesmo? É gostoso comprar uma sandália nova. Mas uma sandália é para a gente pôr os pés dentro dela. Mas para se pôr os pés dentro dela é preciso que o “dentro dela” esteja vazio. Se o “dentro dela“ estiver cheio o pé não entra. É o vazio da sandália que a torna útil. Vocês gostam de refrigerante. Querem pôr o refrigerante no copo. Mas para se pôr o refrigerante no copo é preciso que o copo esteja vazio. Um copo é um vazio cercado de vidro por todos os lados, menos o de cima. Aí você dá uma risadinha e diz: “Eu não preciso de copo. Uso um canudinho de plástico…“ Mas o canudinho só funciona se estiver vazio. É preciso que ele esteja vazio para que o refrigerante passe por dentro dele quando você chupa. Na escola o professor já lhes explicou como são os pulmões? Eles se parecem com um esponja: são cheios de buraquinhos vazios. Os buraquinhos têm de estar vazios para que o ar entre neles. Coisa ruim é quando, resfriados, os pulmões ficam “cheios“. Pulmão cheio não deixa respirar. Coisa gostosa é andar de bicicleta. Você pedala, as rodas rodam, e lá vai você sentindo o ventinho gostoso no rosto. Mas as rodas, para girarem, precisam ter um buraco no meio. É nesse buraco que entra o eixo. É o vazio no centro da roda que a torna útil. Vocês gostam de bolo. Eu também. Para se fazer um bolo a gente procura a receita num livro de receitas. A primeira coisa que aparece numa receita são os “ingredientes“: farinha, ovos, açúcar, manteiga, leite e outras coisas. Mas eu nunca vi, em livro de receitas, explicado que se não se misturar uma pitada de vazio com os ingredientes, o bolo não fica bom. Fica “embatumado“, pesado, ruim. É o vazio que faz o bolo ficar fofinho e leve. Aí você me pergunta: “Mas como se faz para misturar o vazio na massa do bolo?“ É simples. É para isso que se batem as claras dos ovos. As claras, sem bater, são só o “cheio“. Mas, depois de batidas, estão cheias de vazio. Vocês sabem bater claras? É divertido. A gente pega um garfo e vai enrolando a clara com movimentos circulares rápidos. Para quê? Para pescar vazio. Depois de batidas as claras, olhem bem: elas se transformaram numa espuma, milhares de bolhas minúsculas. Dentro de cada bolha está um pouquinho de ar. O fermento faz o mesmo efeito. Misturado com a massa o fermento começa a produzir bolhas bem pequenas de um gás, semelhantes àquelas que existem dentro das garrafas de refrigerantes. A casa também é um vazio cercado de paredes. Para isso servem as paredes: para pegar o vazio e permitir que ele seja usado. Os arquitetos e arquitetas são os artistas que sabem a arte de pegar vazios por meio de paredes. E as janelas? Também são vazios. Buracos. Já imaginaram uma casa sem janelas? Seria horrível viver numa casa sem janelas. Só conheço uma casa sem janelas: os prédios do Congresso Nacional, em Brasília. Parece que a ausência de janelas não faz bem nem para os sentimentos e nem para os pensamentos… É o vazio entre os meus olhos e o jardim que me permite ver o jardim. É o vazio chamado “silêncio“ que me permite ouvir a música. E o espelho? Para ser bom, para refletir o seu rosto, é preciso que seja vazio.
Agora uma de vocês me diz: “Mas vô: faz tempo que você está contando como era a sua vida de menino, na roça! E agora você começa a falar sobre o vazio…“Aí eu explico: “É que a roça é o lugar onde o vazio é grande. A cidade é o lugar onde o vazio é pequeno.“ Na cidade a gente olha para fora e os olhos logo batem num edifício, num muro, nos automóveis. Na cidade a gente vê curto. Na roça, porque o vazio é grande, os olhos vêem longe, muito longe: os campos, as matas, as montanhas no horizonte, o sol que morre, a lua que nasce, as estrelas… Que coisa bonita é ver a cortina branca da chuva que vai chegando…
Quando o vazio é grande o mundo cresce. Coisa que eu gostava de fazer quando menino: deitar no capim e ficar vendo as nuvens. Pareciam navios navegando no mar do céu, mudando de forma, sem parar: o pato virava regador, o regador virava elefante… Eu não entendia uma coisa: como é que as nuvens não caíam! De vez em quando elas caíam como chuva de água ou chuva de pedra de gelo. Disso eu concluía que nuvem era água e gelo. Aí eu me perguntava: como é que água e gelo ficam lá em cima, flutuando como se fossem flocos de algodão? E os urubus? Todo mundo acha que urubu é ave feia. Discordo. Vocês já pararam para ficar olhando o vôo dos urubus? Pensando no vôo dos urubus eu me lembrei de uns versos da Cecília Meireles:
“Os dias felizes estão entre as árvores, como pássaros: viajam nas nuvens, correm nas águas, desmancham-se na areia. Todas as palavras são inúteis, desde que se olha para o céu. A doçura maior na vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculos dos dias sossegados…“
Os urubus voam muito alto – parecem uns pontinhos negros no azul vazio do céu. Para voar eles nem batem asas. Eles flutuam nas correntes de ar quente que sobem. Foram os urubus que ensinaram os homens a voar com as asas delta. Se não fosse o vazio do céu não haveria nem o vôo dos pássaros e nem o vôo dos homens.
Na roça, porque o vazio era grande, a liberdade era grande também. O vazio é um lugar bom para brincar. Se não fosse o vazio do céu, como é que eu poderia empinar uma pipa? Se não fosse o vazio debaixo da árvore, como é que eu ia balançar, até bater com a ponta do pé na folha do galho alto? Os campos eram imensos vazios, sem cercas. De manhã, depois do café com leite, pão e manteiga, eu saía para fora. Não era preciso prestar atenção no tráfego para não ser atropelado. Não havia automóveis correndo e buzinando. No vazio eu era um menino livre, brincalhão… Meus pensamentos voavam com as nuvens e os urubus…
E havia também um vazio chamado silêncio. Silêncio é quando não há ruídos e barulhos. Na cidade não há o vazio do silêncio: nossas casas são invadidas pelo ronco das motocicletas, das buzinas, do som a todo volume. Quando o espaço está vazio de barulhos a gente pode escutar as músicas da natureza. Há 150 anos um chefe índio dos Estados Unidos escreveu uma carta ao presidente daquele país falando sobre as cidades dos ditos civilizados. Disse ele:
“Não há lugar calmo nas cidades do homem branco. Nenhum lugar para escutar o desabrochar das folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. A barulheira ofende os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos à volta de uma lagoa, à noite…“
Vocês já ouviram a música das folhas das árvores sacudidas pelo vento? Já ouviram o canto de um sabiá no meio da mata, ao entardecer? O zumbido das abelhas em busca de flores?
A vida precisa do vazio: a lagarta dorme num vazio chamado casulo até se transformar em borboleta. A música precisa de um vazio chamado silêncio para ser ouvida. Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito. E as pessoas, para serem belas e amadas, precisam ter um vazio dentro delas. A maioria acha o contrário; pensa que o bom é ser cheio. Essas são as pessoas que se acham cheias de verdades e sabedoria e falam sem parar. São umas chatas quando não são autoritárias. Bonitas são as pessoas que falam pouco e sabem escutar. A essas pessoas é fácil amar. Elas estão cheias de vazio. E é no vazio da distância que vive a saudade…
A roça é o lugar onde o vazio é grande. O vazio grande da roça, com seus espaços e silêncios, é o colo da natureza, nossa mãe de onde saímos e para onde haveremos de voltar… Assentados no colo da mãe o medo se vai e tudo fica bom. A cidade é o cheio. A roça é o vazio. Tenho saudade do vazio da roça…
Rubem Alves, crônica ‘O vazio’, do livro “Quando eu era menino”. [ilustrações Paulo Branco]. Campinas SP: Papirus, 2003. (Originalmente publicado em ‘Correio Popular, Caderno C’, 24.2.2002).
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte
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