sábado, 24 de junho de 2023

MEU FILHO NÃO QUER LER. E AGORA, JOSÉ?

Giovana Madalosso

Quase ninguém está lendo, ou quase ninguém está lendo tanto quanto gostaria

Há poucos anos, escrevi um texto me gabando de ter transformado minha filha em leitora. Eu contava que, tal qual o personagem de Kafka, ela havia passado por uma metamorfose, tendo se transmutado em um inseto, no caso, uma traça, com a couraça abaulada de tanto consumir livros.

Na ocasião, ela tinha nove anos. Como pode se esperar de uma escritora (desculpe o clichê), eu amo ler. Adoro a possibilidade de viver uma história em completo silêncio, coisa que só a literatura oferece.

Meu companheiro é dos meus. Portanto, à noite, tudo o que se ouvia na nossa casa eram páginas sendo viradas e aparelhos digestivos trabalhando, já que, antes de dormir, a tela era não apenas desincentivada como proibida para menores.

Essa rotina, que um coach chamaria de estratégia, acabou funcionando. Nunca obriguei minha filha a ler, mas, não podendo usar telas, tudo o que lhe restava era desenhar, olhar as manchas da parede ou se entregar à leitura. Depois de esgotar seus lápis, foi pegando um gibi aqui, um livro ali, até o dia em que a vi acordar cercada de celulose.

Poderíamos ter vivido para sempre nesse paraíso se a humanidade não tivesse mordido a maçã de Zuckerberg. Ou melhor, se ele e seus colegas do Silício não tivessem envenenado a maçã, usando diversos subterfúgios para prender a nossa atenção ou mesmo nos viciar nos aplicativos, como o botão de like, estímulo de resultado tão potente (e danoso) que chega a aparecer em tomografias na região do cérebro que ativa a dopamina.

De uns anos para cá, eu, meu companheiro e minha filha deixamos de ser traças e passamos a ser baratas insatisfeitas inventando desculpas para pegar o smartphone. Depois do jantar, digo para eles que preciso resolver uma emergência do trabalho e dou uma olhada no Instagram. Meu companheiro faz o mesmo, entrando no Twitter. Ela, que ainda não usa redes sociais, diz que precisa pegar uma tarefa no WhatsApp e aproveita para ver mensagens.

Sejamos honestos, quase ninguém está lendo. Ou quase ninguém está lendo tanto quanto gostaria. E se nem nós conseguimos, como cobrar isso dos nossos filhos? Se eu tivesse resposta, não estaria escrevendo esta coluna, e sim um best-seller, afinal muita gente está passando pela mesma crise.

Tudo o que sei é que vale a pena praticar pequenas resistências. Nem sempre lemos à noite, mas tentamos ler todas as noites. Nem sempre lemos em viagens, mas levamos livros para todas as viagens.

Sempre chega uma hora em que, como no poema "E agora, José?"

a festa acabou,
a luz apagou,
o wifi oscilou,
a mãe desplugou,
e o José, ou melhor, a criança, acaba pegando um livro.

E que livro é esse? Aquele que dá prazer.

E isso vale para todas as idades. Não conseguiremos competir com vídeos de gatinhos fofos ou com algoritmos turbinados para reter a nossa atenção se ficarmos de nariz empinado dizendo que só isto ou aquilo é boa literatura. Precisamos criar leitores livres, leves e soltos. Ou não criaremos.

Como já andei dizendo por aí, se o seu filho gosta de ler horóscopo, ótimo. Quem começa com áries acaba indo para libra, para a astrologia, para a astronomia, para a filosofia, e tudo isso pode dar em Clarice Lispector. Ou nos vídeos da Madama Brona. Porque também é preciso aceitar que, desde sempre, alguns de nós se tornam leitores ávidos e outros não.

Minha filha não é aquela traça que, em certo momento, aparentou ser, mas já sabe o caminho, já sabe como chegar às lombadas. E saber o caminho já é algum caminho andado.

Fonte:Folha de S.Paulo

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