Ricardo de Oliveira*
Conquista histórica da sociedade brasileira, o SUS foi uma iniciativa inovadora para sua época
A Fiocruz lançou em 2009 o livro "O que é o SUS?", de autoria do professor Jairnilson Silva Paim, com objetivo de esclarecer um público não especializado sobre o que é o Sistema Único de Saúde (SUS). Considero uma leitura fundamental para quem deseja conhecer o nosso sistema de saúde, sua história, seus problemas e desafios. Mesmo passados 14 anos as questões estruturais relacionadas no livro continuam a desafiar a todos que se propõem a construir um sistema de saúde conforme pensado pelo Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB).
O autor nos lembra que o MRSB, organizado pela sociedade civil cerca de 10 anos antes da promulgação da Constituição, conseguiu uma vitória histórica ao inscrever na nossa lei maior de 1988 o direito à saúde como dever do Estado e criado o SUS, público e universal. Pela primeira vez na história do nosso país a constituição assegurava esse direito a todos os brasileiros e brasileiras.
A Constituição não estatizou o sistema de saúde, mas definiu o setor privado como complementar ao público, cabendo ao Ministério da Saúde a definição das políticas públicas de saúde e a coordenação de todo o sistema para evitar duplicidade de esforços e desperdícios de recursos. Neste ponto o autor constata uma contradição entre o que diz a nossa Carta Magna e o que aconteceu na prática: a falta de investimento público não permitiu o crescimento necessário da infraestrutura do SUS e criou condições para ampliação do setor privado na saúde, o que, na opinião de Jairnilson Silva Paim, vai dificultar a implantação do SUS como ressaltam alguns estudiosos de políticas de saúde.
Jairnilson sintetiza o que é o SUS, conforme estabelecido na Constituição, da seguinte forma: o SUS é o conjunto de ações e serviços públicos de saúde, compondo uma rede regionalizada, hierarquizada e organizada a partir das diretrizes de descentralização, integralidade e participação da comunidade. É, portanto, uma forma de organizar as ações e os serviços de saúde no Brasil, de acordo com princípios, diretrizes e dispositivos estabelecidos pela constituição da república e pelas leis subsequentes.
O SUS foi uma iniciativa inovadora para sua época
A proposta de criação do direito à saúde e do SUS também foi uma inovação em termos de formulação, organização e gestão de políticas públicas, combinando elementos republicanos e democráticos. Abaixo listamos 7 aspectos destacados por Jairnilson Silva Paim que fizeram a proposta do sistema público de saúde uma iniciativa inovadora:
Essas inovações permitiram que a sociedade brasileira conquistasse importantes políticas públicas de saúde. O autor destaca alguns dos resultados alcançados até 2009, data de publicação da obra: o Programa de Saúde da Família (PSF), o Programa Nacional de Imunizações (PNI), a Política Nacional de Medicamentos, a Política de Saúde Mental, o Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), a rede de bancos de sangue (os Hemocentros) e o desenvolvimento de ações de comunicação e educação em saúde, formando trabalhadores e profissionais da saúde de diversos níveis de atuação.
Os desafios para efetivação plena do direto à saúde ainda são muitos
O livro também apresenta um diagnóstico amplo sobre as dificuldades do sistema de saúde. Segundo o Paim, as questões referentes ao acesso e à qualidade das ações e dos serviços no sistema de saúde brasileiro expressam os limites e distorções dos modelos de atenção à saúde vigentes. Guardam íntimas relações com problemas referentes à distribuição desigual da infraestrutura do sistema de serviços de saúde, especialmente do número de estabelecimentos e de trabalhadores de saúde. Têm a ver, também, com problemas não resolvidos no financiamento, organização e gestão do SUS. Mesmo que o SUS possa absorver certos problemas vinculados ao modo de vida da população, é praticamente impossível ser eficiente e efetivo numa sociedade com níveis de desigualdade, pobreza e violência como a nossa.
Em relação à gestão, diz o autor: O SUS tem sofrido grande vulnerabilidade face às mudanças de governos, gestores e partidos o que compromete a sua eficiência, a continuidade administrativa e, a sua legitimidade perante a opinião pública. Dirigentes improvisados, persistente clientelismo político, alta rotatividade das equipes e engessamento burocrático exigem alternativas criativas para proteger ou blindar o SUS dos interesses e das manobras da política na saúde. Nem por isso devemos negligenciar os mecanismos de controle, nem permitir o desperdício do dinheiro público. Contudo tão relevante quanto o combate à corrupção e ao desperdício é garantir o uso racional dos recursos da saúde, para assegurar maior eficiência e efetividade. Um conjunto de amarras burocráticas, que, sob o pretexto de combater a corrupção, engessa a administração, prejudica o fluxo de insumos vitais para o cuidado das pessoas e trata a complexidade do sistema de saúde como se ele fosse um setor qualquer, não pode ser ignorado como um dos grandes responsáveis pela pouca resolutividade e baixa qualidade dos serviços do SUS.
Ainda a título de diagnóstico, o autor cita um trecho do documento "Vinte anos do SUS, celebrar o conquistado, repudiar o inaceitável", elaborado pelo Centro Brasileiro De Estudos De Saúde (CEBES) e divulgado em 2008 durante as comemorações dos 20 anos do SUS, que diz: "A sociedade brasileira investiu trabalho e esperanças na construção de um SUS para todos. É inaceitável que governos e gestores, representantes do Estado responsáveis pelo SUS, deixem de cumprir suas diretrizes elementares. Não podemos mais esconder ou justificar as tragédias cotidianas que afligem a população e que podem ser resolvidas já". Como podemos ver um documento visionário e válido hoje em dia.
A questão da digitalização da saúde não foi abordada no livro com a importância que ela tem hoje, o que é perfeitamente compreensível, até porque, esse tema assumiu uma relevância maior nos últimos anos. Mas, com certeza, hoje em dia, é um dos mais importantes desafios do SUS, devido à possibilidade que essa tecnologia descortina para ajudar a resolver problemas no atendimento à população, particularmente na ampliação do acesso aos serviços de saúde nas regiões mais remotas do país. No entanto, o autor cita a importância da sustentabilidade científica e tecnológica do SUS.
A escrita do autor nos passa a emoção com a qual o livro foi feito e cumpre plenamente seu papel de mobilizar o leitor pela importância do que foi conquistado e a necessidade de manter a mobilização social para alcançar a implantação plena do SUS. No seu entendimento o direito à saúde não é um direito natural que se alcança ao nascer. Não é uma dádiva de qualquer governo. É historicamente construído e conquistado mediante lutas sociais. Vale muito a leitura.
*Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção e foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 e 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (FGV/2012) e "Gestão Pública e Saúde" (FGV/ 2020). É Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do comitê de filantropia da UMANE.
Fonte: Folha de S.Paulo
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