Carlos Heitor Cony
Muito mistério que ninguém explica, nem Freud, que na realidade nada explicou, nem a nossa vã filosofia, como disse um personagem de Shakespeare. Além dos discos voadores, dos ossos de Dana de Teffé que não se sabe onde estão, e da origem dos fundos que formaram o valerioduto, temos agora o da bala perdida que atingiu a cabeça de uma senhora que assistia televisão na sala de seu apartamento, num edifício classe média alta, no Rio.
Nas vizinhanças do prédio, não há morros onde são freqüentes os tiroteios entre grupos de traficantes entre si ou com a polícia. Nenhum assalto ou ocorrência policial foi registrada nas imediações naquela hora. Nem se tratava realmente de uma bala perdida, uma vez que, em princípio, ela não tinha destinação alguma. A perícia constatou que o projétil atingiu a vítima em movimento descendente, vinda de cima para baixo, já sem a força que poderia matar a senhora. O impacto não deu para penetrar no cérebro, alojando-se do lado de fora.
Concluir o quê? Alguém nas redondezas, sem nada o que fazer, deu um tiro para o ar, comemorando alguma coisa --mas não havia Copa do Mundo, Réveillon ou alegria coletiva, quando sempre há um sujeito que, não podendo soltar um busca-pé, dá um tiro para o alto, festejando isoladamente um momento qualquer ou mesmo coisa alguma. Teste de arma? Talvez, embora o lugar apropriado para testar armas seja um stand de tiro legalizado.
Sobra então a realidade que vivemos: quem dispõe de arma faz dela o uso que lhe apraz, na certeza de que, armado, tem direito a ter razão. É possível que ainda apareça um responsável pelo tiro e o mistério seja esclarecido. Por ora, prevalece a banalidade da violência boçal em suas múltiplas variações.
Fonte: Folha de S. Paulo - 20/12/2005
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