Becky S. Korich
Ninguém vai sair do celular. Porque o celular não sai de nós
Não conseguimos ficar longe do celular por muito tempo. E-mails, mensagens, agenda, redes sociais, fotos, navegadores. Qualquer pretexto serve para nos socorrermos à nossa bombinha particular de dopamina. É isso que buscamos: prazer e recompensa, de preferência sem ter que suar. É irreversível, irremediável, um caminho sem volta. Não adianta nos iludirmos que amanhã seremos menos dependentes dessa droga maravilhosa e maldita que a tecnologia nos viciou. Pelo contrário, a tendência é precisarmos de uma dose a mais a cada dia, pois a tolerância biológica do cérebro se acostuma e pede mais estímulos para produzir a mesma satisfação.
Toda semana sai um novo estudo apontando os efeitos danosos que os smartphones causam à saúde mental, principalmente à das crianças. Não que seja novidade, mas as evidências dos "efeitos catastróficos" (expressão usada no artigo de John Burn-Murdoch, de 20 de abril neste jornal) toca no que mais atormenta os pais: a culpa e o medo de errar com os nossos filhos.
Apesar de saber que se trata de um pedido frívolo, a frase que mais pronuncio em casa, exaustiva e sistematicamente, é "sai desse celular". Faz parte da dinâmica: eu sei que meu filho não vai largar o celular tão cedo; do outro lado, ele recebe o meu recado para não exagerar, seja lá o que signifique ‘exagero’ quando se fala de uma adição. O castigo — que chamamos de ‘consequência’ como manda a cartilha da boa educação — recai sobre o mesmo objeto endeusado: o confisco do celular.
Com esperteza, que certamente aprendeu nas redes, meu filho recentemente me questionou, — Por que vocês podem ficar o dia inteiro no celular e eu não? Expliquei que existe uma grande diferença entre a criança que fomos, e as crianças de hoje. Nós, adultos, somos fruto do que vivemos, as crianças de hoje, frutos do que não tiveram a chance de viver. Brincadeiras na rua, coleções de selos, papeis de carta, Os Flinstones, Agente 86, Chacrinha, vinil na vitrola, Pega Varetas. Essas eram as nossas dopaminas, numa época que crianças não precisavam de animadores de festa para se divertir. Mas ele se recusou a imaginar que um dia vivemos, e bem, sem Smartphones. — Para de me enrolar, você não me respondeu, porque eu ficar muito tempo no celular faz mal, e vocês não? — Porque somos adultos, e sabemos nos controlar, respondo sem nenhuma convicção, tentando controlar os meus nervos. — Então me prove, diz ele.
Para provar que ele estava errado, lancei um desafio: — Em casa, a partir de hoje, crianças e adultos desligam o celular às 19h e o deixam na sala.
Desafio aceito. Trato feito. Fiquei satisfeita com a habilidade que tive ao resolver o assunto sem nenhuma briga nem ameaça. Afinal sabemos que exemplo é tudo na educação de crianças.
Com o passar das horas, comecei a sentir falta de alguma coisa. Depois de uma caixa de Bis, conclui que não era chocolate que meu corpo pedia. Meu marido ficou descompensado e começou a balançar a perna. "Só uma olhadinha e já devolvemos para a sala", pensamos juntos. Esperamos o garoto dormir, e silenciosamente caminhamos para a sala para resgatar os celulares. Fomos abduzidos pelo universo que mora dentro dos aparelhos, cada um de um lado da cama, e não percebemos o tempo passar, livres da culpa (já que o delito estaria longe dos olhos do filho) e na paz da dopamina.
Mas um xixi noturno do garoto nos deu um flagrante, mergulhados que estávamos nas nossas telas. Tentamos disfarçar jogando os aparelhos para debaixo do lençol, mas não colou. Depois explicamos que estávamos "trabalhando" e "ouvindo palestras", mas o Instagram cintilava na minha tela e o Candy Crush Saga brilhava na do pai.
Dia seguinte fiquei menos tempo no celular, foi um ato involuntário. Foi até bom, conversei, li e tive mais tempo livre. Mas logo veio uma fissura e me rendi.
Aprendemos mais com nossos filhos do que eles com a gente, e desse fato tiramos a grande lição de que, às vezes, precisamos trancar a porta do quarto para evitar flagrantes no meio da noite.
Fonte: Folha de S.Paulo
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