Drausio Varella
Patrulhamento, mesmo bem-intencionado, inferniza os últimos dias dos doentes
Está mais do que na hora de pararmos de comparar doenças com guerras. Pessoas com câncer são as que mais sofrem com essa analogia.
Quantas vezes você já ouviu frases como: "A luta contra o câncer ", "O combate ao câncer". Eu mesmo participei de um livro escrito anos atrás com dois colegas que ficou com o título "Vencendo o Câncer", sem me dar conta de que a boa intenção de instilar otimismo nos pacientes poderia cair na vala comum das mensagens equivocadas.
Quantas vezes você ouviu: "Ela lutou contra a doença", "Foi uma guerreira", "Ele não se entregou", "Só se curou porque tinha muita vontade de viver".
Ou, na visão pessimista, "Também, com aquele desânimo todo, como poderia se curar", "Ela não reagiu porque perdeu o gosto pela vida", "Ele sempre foi negativista".
A consequência desse tipo de comentário é rotular os que evoluem mal como perdedores, fracos e incapazes de "lutar pela vida". Os que vão a óbito levam para o túmulo a culpa da fraqueza que os impediu de "enfrentar o inimigo", com o empenho necessário para derrotá-lo.
Isso quando não atribuem ao doente a culpa da enfermidade: "Também, deprimido como ele, só podia fazer um câncer", "Ansiosa como ela sempre foi só podia dar nisso". Não sei quantas mulheres com câncer de mama tratei, mortificadas por terem "gerado o próprio tumor", consequência de algum problema mal resolvido ou transtorno mental diagnosticado em psicoterapia de botequim.
Ao atribuir ao doente a culpa dos males que o afligem, evitamos nos defrontar com a consciência da fragilidade da existência humana. Se ele sofreu um ataque cardíaco, embora tivesse minha idade, fosse magro, não fumasse, não bebesse e corresse cinco vezes por semana, deve ter sido porque era tenso, estressado, trabalhava muito ou teve uma desilusão amorosa. É preciso encontrar um defeito que justifique a tragédia que o atingiu, mas me poupará porque sou um poço de equilíbrio, mesmo que fume dois maços por dia, beba todas, passe os dias estatelado no sofá, cheire cocaína e minha quinta mulher tenha fugido com outro na calada da noite, como fizeram as anteriores.
Por trás de tudo está a incapacidade humana de aceitar que a vida é um bem doado em consignação temporária, que pode ser cassada sem aviso prévio. Nosso apego a ela é tão avassalador que sequer conseguimos imaginar a possibilidade de ocorrer conosco o evento que ceifou a vida do outro. Essa característica tem raízes evolutivas: descendemos de ancestrais que defenderam suas vidas até esgotar o derradeiro resquício das forças, os desapegados não deixaram descendentes.
Com a melhor das intenções, muitas vezes os familiares infernizam o dia a dia do doente que evolui mal. À medida que as metástases se disseminam, podem comprimir e comprometer a função de órgãos essenciais para o funcionamento do organismo: fígado, pulmões, alças intestinais, A depender da parte atingida, eventualmente surgem sintomas que interferem com o paladar, a digestão, a respiração. Perda de apetite e emagrecimento são queixas comuns nessa fase, agravadas pelo efeitos colaterais dos analgésicos e dos medicamentos necessários para deter o avanço dos tumores.
Angustiados, familiares e amigos insistem para que o paciente se esforce para aumentar o aporte calórico. Não levam em conta que para passar um dia inteiro sem comer é preciso grande esforço ou estar muito doente. A insistência para que a pessoa se alimente a qualquer preço é contraproducente. Mais ainda se vem carregada de reprovações: "saco vazio não para em pé", "como vai melhorar se não come", "você não quer ficar bom?".
O paciente não come porque passa mal; se os sintomas derem trégua, a fome voltará. Fome é instinto mais irrefreável do que a sede. Na maioria das vezes os circunstantes interpretarão a melhora ao revés: "viu só, foi só comer que começou a melhorar".
Esse tipo de patrulhamento bem-intencionado pode infernizar os últimos dias dos doentes. Foi assim com seu Tanaka, um senhor que atendi com câncer de próstata avançado. As filhas insistiram para que eu o proibisse de beber o cálice de saquê tomado religiosamente antes das refeições. Ele escutou cabisbaixo, com ar de poucos amigos. Perguntei com que idade adquirira esse hábito. Respondeu que aos dez anos, no Japão. Seu Tanaka estava com 94 anos. Até hoje lembro do sorriso que ele me deu.
Fonte: Folha de S. Paulo - 08/02/23
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