domingo, 5 de fevereiro de 2023

MESMO FRÁGIL, RAZÃO AINDA É A MELHOR DEFESA CONTRA A BARBÁRIE


Sobrevivente de Auschwitz, Jean Améry concebe o Iluminismo como maneira de libertar o homem da própria brutalidade

Ainda em 2018, escrevi nesta Folha sobre a importância de aprendermos a escutar as demandas e as críticas dos nossos opositores. Naquela época, comentei o discurso de despedida de Barack Obama da Presidência dos Estados Unidos.

Nele, Obama reflete sobre a crescente polarização na política norte-americana e defende a ideia de que um presidente deve governar para todos, nem que seja para nos legar o exemplo de que a manutenção de um ambiente democrático depende quase que única e exclusivamente da nossa capacidade de reconhecer a humanidade dos nossos concidadãos e a legitimidade dos seus pleitos.

Em um dos momentos desse discurso de que mais gosto, Obama faz referência ao advogado Atticus Finch, personagem do romance "O Sol É para Todos" (1960), da escritora Harper Lee, e adverte: "Para que a nossa democracia funcione neste país cada vez mais diverso, é preciso que cada um de nós ouça o conselho de Finch: 'Você nunca entenderá um homem enquanto não calçar os seus sapatos e olhar o mundo por seus olhos'".

De lá para cá, muita coisa aconteceu na política dos Estados Unidos e do resto do mundo, dando-nos a impressão de que o chamado de Obama à razoabilidade já não se aplica mais. Eu mesma, diante do que aconteceu em Brasília em 8 de janeiro, fui tomada por um enorme desânimo, pois a sensação que tive foi que fracassei como intelectual e cidadã.

Senti que havia fracassado porque, diante das cenas de barbárie, em que testemunhamos a tentativa de destruição de vários dos nossos tesouros, todos os meus convites dos últimos anos à leitura e ao pensamento crítico aparentavam ser ingênuos e frágeis demais para lidar com uma situação como aquela, em que o homem resolve renunciar à razão para se permitir agir de acordo com o que há de mais baixo e recriminável em sua natureza.

Ora, será que os livros, os mesmos livros que foram capazes de expandir o meu horizonte e emprestar um propósito à minha vida, nada podem? E a razão, será que ela ainda inspira algum respeito?

Em "Além do Bem e do Mal" (1886), Friedrich Nietzsche escreve que o Iluminismo provoca a fúria de todos aqueles que se sentem incapazes de governar a própria vida, pois uma das coisas mais valiosas que o pensamento de inspiração iluminista propõe é justamente que nos tornemos responsáveis por aquilo que somos e que suspeitemos das nossas paixões. Isto, infelizmente, nunca foi uma tarefa fácil para os homens, e os próprios filósofos iluministas estavam cientes disso.

Tenho para mim que o bom emprego da razão —ou seja, a capacidade de aplicarmos o conhecimento que possuímos à realidade, visando o nosso aperfeiçoamento e, a partir dele, a melhoria das condições de vida de todos os homens— é algo que assusta, pois, além de tudo, requer que também sejamos responsáveis uns pelos outros, já que a nossa realização estaria intimamente relacionada com a do próximo.

O que um evento traumático como o 8 de janeiro demonstra é que os livros nada podem sozinhos e que a razão, para cumprir o seu papel, necessita que nos tornemos cada vez mais capazes de arcar com as suas exigências, tanto enquanto indivíduos como enquanto sociedade.

A razoabilidade defendida por Obama em seu discurso de despedida só é possível de ser exercida em um contexto em que a maioria das pessoas está ciente do que acabei de dizer, e o que o Iluminismo nos ensina é que a manutenção de tal contexto depende de cada um de nós.

A sensação de fracasso que senti ao testemunhar a barbárie de 8 de janeiro só se desfez quando entrei em sala de aula na última quarta-feira. Na ocasião, reafirmei aos estudantes que a razão e a valorização dos seus frutos é algo pelo qual devemos lutar incansavelmente, dia após dia, enquanto houver vida em nossos corpos, pois um mundo que deixa de ser governado pela razão passa, inevitavelmente, a ser controlado pelo medo.

Uma das mais contundentes defesas do Iluminismo foi escrita pelo ensaísta Jean Améry em seu discurso de aceitação do Prêmio Lessing, em 1977. Nascido na Áustria em 1912, filho de pai judeu e mãe católica, Améry estudou literatura e filosofia em Viena. Mais tarde, na Bélgica, lutou na resistência contra os nazistas, mas foi pego, torturado pela Gestapo e, em seguida, feito prisioneiro em campos de concentração.

A sua experiência de sobrevivente está documentada no livro "At the Mind's Limits: Contemplations by a Survivor on Auschwitz and Its Realities" (nos limites da mente: contemplações e realidades de um sobrevivente de Auschwitz, 1966).

A relação de Améry com o pensamento iluminista é complexa, pois, enquanto sobrevivente de um dos maiores e mais terríveis crimes já cometidos, ele reconhece a fragilidade da razão ante o terror e a violência extrema. No entanto, embora ele tenha consciência de que a razão é frágil, muito frágil mesmo, Améry também nos chama a atenção para o fato de que ela permanece sendo a única defesa que possuímos contra as tentativas de desumanização do homem pelo seu semelhante:

"Quem quer que tenha sido vítima de opressão pode facilmente confirmar a partir da própria experiência que a igualdade não é uma fantasia. A realidade é sempre mais astuta que a filosofia que, impotente, deseja refleti-la. É por isso que o Iluminismo não é uma construção doutrinária homogênea, mas o diálogo esclarecedor e constante que somos obrigados a manter conosco e com os outros. A luz do Iluminismo clássico não foi uma ilusão de ótica, uma alucinação. Onde ela ameaça desaparecer, a consciência humana enturvece. Quem repudia o Iluminismo está renunciando à educação da raça humana".

Para Améry, portanto, o Iluminismo seria uma espécie de filosofia perene, uma maneira de encarar o mundo na tentativa de libertar o homem da própria brutalidade e ignorância.

Foi a partir da leitura e da discussão com os meus alunos desse pequeno texto que deixei de lado o desânimo e a sensação de fracasso que tomou conta de mim nos últimos dias e resolvi que, sim, a razoabilidade ainda é possível e que a única maneira de livrar a nossa democracia de perigo é através do diálogo e do convite ao pensamento crítico.

Fonte: Folha de S. Paulo

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