Janer Cristaldo
Entre as coisas que evito na vida, estão as filas, e já perdi muita coisa boa por causa disso. Durante meus anos de Paris, jamais subi na torre Eiffel. Por duas razões. Primeiro, considerava ser um lugar comum, típico de turista deslumbrado. Segundo, pelas filas. Quando superei o primeiro obstáculo, restou o segundo. Em uma das últimas tentativas, ainda com a Baixinha, havia filas de quatro ou cinco horas. Em uma das patas da torre, a fila era menor, previa-se duas horas. Era aquela pata por onde se sobe a pé.
Merci bien! Verdade que, anos depois, acabei subindo. Passava por lá, e sei lá por que estranho fenômeno, havia filas de 15 minutos. Então tá. Cá entre nós: a visão do alto do Arco do Triunfo, que é bem mais baixo, é mais esplendorosa.
Há, é claro, as filas das quais jamais escapamos. Na era pré-internet, as de banco eram uma delas. Antes do real, naqueles dias em que uma mercadoria tinha o preço aumentado três vezes por dia, a fila era um inferno inevitável. No dia seguinte à vigência da nova moeda, sumiram como que por encanto.
Sempre vi fila como estigma de país pobre e subdesenvolvido. Ou praga de país socialista. Na época do comunismo, os países soviéticos eram os campeões do triste esporte. Se um russo via um fila, nela entrava sem pensar. Porque na outra ponta certamente havia algo que faltava a todos. Mas existem também as filas do supérfluo. Uma das raras filas que vi em Paris foi na Champs Elysées. Eram centenas de turistas, na maioria japonesas, numa loja de bolsas Vuiton. Todos os dias.
Em Nomade, a escritora somali se defronta com misteriosas instituição do Ocidente, o tíquete para filas.
“Eu estava cativada pela engenhosidade do sistema. As pessoas não tinham de fazer a fila como éramos obrigados na África; eles não tinham que se enfiar, empurrar os outros ou se comportar de maneira agressiva para defender seu lugar na fila de espera. Podia-se sentar, e durante este tempo seu tíquete de alguma maneira fazia a fila por você”.
É observação de quem vive em um mundo que depende de filas. Fila é perda de tempo, ou seja de vida. Quando tenho de enfrentar alguma da qual não posso escapar, me refugio na leitura. Em suma, fila não é coisa de se gostar. Exceto talvez em São Paulo.
Desde que cheguei aqui, há 23 anos, notei um certo apreço, quase orgulho, em curtir uma boa fila, seja em exposições, shows ou restaurantes. Sem falar no trànsito. É quase com um sentimento de heroísmo que um paulistano se gaba de ir até Santos em três ou quatro horas, distância que normalmente tomaria menos de hora. Um estrangeiro se horroriza com 100 ou mais quilômetros de engarrafamento. Para o paulistano, faz parte da vida.
Minha primeira constatação desta sensação de bem-estar em uma fila ocorreu no Famiglia Mancini, restaurante na rua Avanhandava, no centro da cidade. Nos almoços de fins de semana, espera-se no mínimo duas horas para entrar. Ninguém faz cara feia. A fila é uma oportunidade de conversar, confraternizar, fazer novos amigos. Lembro de um Dia das Mães, em que 400 delas esperavam para comer, sem pressa alguma, sob um sol de rachar. Confesso ter entrado em uma dessas filas, não exatamente por vontade própria, mas para mostrar a um amigo francês nossas instituições.
Chegamos a um ponto tal de apreço pelas filas, que as pessoas as buscam como sinal de status. Leio no Estadão de hoje, em reportagem de Mônica Reolom:
Em SP, filas já são evento cultural
Segundo a repórter, a concorrência por atrações não só faz com que paulistanos incorporem a espera como parte do passeio, como também buscam filas para postar foto na internet.
Embora fosse o meio da tarde de uma sexta-feira fria e nublada, Alexandra Sene, química de 41 anos, e o filho Mateus, de 10, já estavam há duas horas e meia em pé na calçada, esperando para ingressar no Instituto Tomie Ohtake, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. "Viemos de Cotia", disse ela, ansiosa para finalmente entrar na mostra Obsessão Infinita (conhecida por exibir milhares de bolinhas), da artista Yayoi Kusama. "Só peguei uma fila parecida com essa quando Ayrton Senna morreu", lembrou Mara Marques, dentista de 42 anos que também estava com o filho, de 10.
Alexandra, Mara e as duas crianças, no entanto, já haviam feito amizade na fila e comprado pipoca e refrigerante das barraquinhas ao redor. Além disso, viraram atração: quem passava de carro ou a pé tirava foto da aglomeração que virava o quarteirão. A nutricionista Thaís Furlani, de 24 anos, brincava: "Vim para tirar foto e postar no Instagram".
Na Barra Funda, o casal Bruno Novaes, de 24 anos, e Aline Alves, de 26, atribuía às redes sociais um dos motivos por estarem há mais de 40 minutos na fila da exposição da dupla osgemeos, na Galeria Fortes Villaça. "Os amigos postam e estimulam que a gente venha. Nós também pretendemos tirar foto lá dentro", disse ele.
Por coincidência - ou talvez nem tanto - a Vejinha São Paulo de hoje tem como reportagem de capa "as filas que valem a pena. A revista dedica nada menos que sete páginas às melhores filas da cidade.
Para o paulistano, pouco importa o espetáculo ou evento. O que interessa é o “eu vi, eu estive lá”. O filme pode ser um solene abacaxi. Mas é preciso vê-lo. Principalmente se for um blockbuster. Como participar de uma conversa com pessoas que já o viram sem tê-lo visto? O que mede a procura de um espetáculo já não é a qualidade do espetáculo em si, mas o tamanho da fila dos assistentes.
Sempre vi São Paulo como uma metrópole um tanto provinciana, e este apreço pelas filas confirma minha opinião. Enquanto fila é maldição em todos os países do mundo, Brasil inclusive, em São Paulo a carneirada vibra com boas horas de espera. O evento já nem é o evento, mas a fila para o evento.
Mais um pouco, e as filas serão anunciadas como atrativo turístico da cidade. Venha entrar nas maiores filas do mundo. Que tem na outra ponta? Não interessa. O que importa é curtir a fila em si.
Fonte: https://cristaldo.blogspot.com - 27/07/2014
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