sábado, 14 de janeiro de 2023

O GOSTO PELA LEITURA - PISO DE TODA PROGRESSÃO

Vicente do Prado Tolezano
Os cultores do intelecto sabem perfeitamente que a via áurea ao desenvolvimento é a leitura. Muita leitura, progressiva em qualidade e complexidade e pelo ato de vontade de ler tonificam os espíritos para a abundância, enchendo-os, inclusive, de prazer.

Gostos (como toda a sensibilidade) são educáveis. Se o gosto pela leitura estiver inalado, a progressão intelectual tende a ser inevitável. Doutra banda, se à leitura houver aversão ou se lhe associam sensações desprazerosas, de tédio, de ojeriza, de irritação, etc …, a progressão oscila entre o improvável e o impossível.

Importante destacar que, em rigor essencial, “ler” é “pensar”, ou seja, é mais do que meramente receber uma comunicação. É constituir-se para ler não apenas o texto, mas para “ler a realidade” (pensar/refletir/interpretar/maturar, etc …).

Corre nesse sentido a própria etimologia de “inteligência” vem de “ler (legere) por dentro (int)”, tal como que o inteligente (“letrado”) é o que lê (capta) tudo de um modo geral.

O divórcio entre leitura e pensamento é fenômeno que se chama analfabetismo funcional e em que há “alfabetização” (conversões materiais entre grafemas e fonemas), mas não há “letramento” (captura de sentido, domínio intelectual). Ou seja, nos quadrantes do analfabetismo funcional, só há pseudo leitura e, pois, pseudo inteligência.

O analfabeto funcional, como o próprio nome diz, usa a linguagem para funcionar e não para significar ou constituir-se, razão porque não progride. Pode receber ordens, instruções e até afetos, mas não alcança ideias, raciocínios, sutilezas semânticas, etc …

Tudo o que ele aprende é por treino, prática, repetição e hábito usando letras e sons (ou seja, “reage”), tal que pode até parecer que lê mas não lê (pensa).

Dá-lhe um livro na mão e ele fica assombrado e reage com algo do tipo “você vai querer que eu leia!”.

Este articulista é advogado de profissão e testemunha tantos e tantos operadores do direito que simplesmente não conseguem ler, senão em níveis muito rudimentares, tentando disfarçar sua inépcia com “hábito de manuseio de tipo de peça” e/ou demais rotinas de trabalho aprendidas apenas por meio meramente de “memória operacional”.

São pessoas bastante medíocres não apenas no início de suas carreiras, mas também no meio e no fim delas, pois, repetimos, não leem/não progridem.

Esses ineptos crônicos nunca leram, por deliberação própria, livros, fosse de um jurista ou, então, romance, crônica, conto, peça de teatro, ensaio, revistas especializadas, tratado científico, poesia, etc …, mas passaram todos por escolas até o nível universitário (às vezes até por pós graduações).

Não só não gostam de ler como têm até asco desdenhoso para com a leitura. O que predominantemente “leram” nos anos de escola/faculdade foram apostilas, esquemas, resenhas, manuais, instruções, entre outras “comunicações funcionais”.

Nos raros e eventuais encontros que possam ter tido com literatura efetiva, podem “até ter dado algum cabo dela mas por obrigação”, ou seja, com os “dois pés no tédio”, coisa própria de quem faz algo não “por gosto” e até mesmo sem alcançar o sentido.

Damos aqui eco às teses do saudoso Prof. Pierluigi Piazzi de que educar o GOSTO pela leitura é o que mais urge e num esquema em que se este não surgiu, ou não foi ao menos estimulado pela escolarização, esta terá sido otimistamente uma inutilidade ou até uma perversidade no caso em que tenha instalado ojeriza à leitura.

Voltamos ao ponto deveras óbvio de só lerá muito quem tiver prazer em ler, o que equivale dizer que só inteligirá muito também quem tiver prazer em usar e expandir sua inteligência.

Aí vem a pergunta: como educar o GOSTO pela leitura?

A regra do próprio Professor Pierluigi Piazzi consiste em que se deve estimular perante um sortimento grande de livros. O aluno, então, começa um que livremente escolheu e, se não gostar (o que provavelmente será o caso), é estimulado a parar imediatamente a leitura e começar um segundo, um terceiro, quarto, etc …, até que, finalmente, algum lhe “roube o coração” e tal que ele não pare de ler e fique até triste quando acabar do livro acabar.

Quando nos entristecemos que uma leitura acabou, seguramente cuidou de um livro que ficará impresso ad vitam e nossa memória e será fonte cíclica do prazer de leitura. Relembraremos e dele vamos contar assiduamente. A consequência é que vamos tentar muitas vezes mais garimpar outra pepita …

Pouco importa, neste aspecto, se o livro versa estórias de capa e espada, castelos e princesas, ficção científica, biografia, relatos históricos, mitos, carros, guerras, espionagem, confidências passionais, nacionalidade, etc …

O que urge é que exista uma associação entre, de um lado, os atos de ler e, acuradamente, de ler algo achado por si próprio, e doutro lado, o gozo efetivo de prazer, situação que não se realiza quando alguém a obra X, Y ou Z porque “a escola manda”.

É violento fazer alguém ler o que não queira, particularmente em leitores incipientes ainda sem o gosto cristalizado por ler. Imagina os estudantes ainda em séries tenras tendo que ler Moreninha, Iracema, poemas barrocos ou coisas do tipo!! O resultado já se sabe …

Não é crível que inexista livro apto a maravilhar alguma alma, por mais peculiar que essa possa ser e que a partir do livro-pepita um gosto por mais livros se inicie. O que existe e aos montes são: i) inépcia em estimular desenvolvimento; ii) é vontade tosca de padronizar as almas promovendo dessensibilização, que em nada é normal apesar de muito comum.

É triste notar, mas é real que os próprios professores não têm, na sua fração majoritária, repertório literário próprio ou personalidade letrada. Seguem procedimentos de conformação para leituras “sobre” o alunado (“funcionam-nos”), em provável e fiel reprodução transmissiva dos vícios que receberam.

É até impossível, ousamos dizer, a alguém que estivesse na posse da verve que o letramento pleno, forjado em muita leitura, outorga que se rebaixasse da naturalmente devida “abordagem de desenvolvimento” para uma mera e tediosa “abordagem de cumprimento”, como sói ser o caso nos domínios escolares.

Já dissemos que ler é pensar e ora agregamos, por sua vez, que pensar é viver. Inteligência é função que integra a vitalidade humana; quem não a desenvolve está como uma flor embotada e tem âmbito vital menor, com fluxos meramente adaptativos/defensivos, cheirando pulsão de morte mesmo.

Ao cabo e em reiteração: para qualquer pessoa desenvolver-se urge-lhe GOSTAR de ler, muito mais que passar anos sentado em bancos escolares, universitários, etc …, os quais podem até ser um escapismo da “leitura para valer”.

Se tiveres que apostar em quem vai ganhar em progressão entre 2 pessoas e tens os dados de que um fica horas a fio sentado em bancos escolares tendo aula e envolvido em outras atividades gregárias da instituição e o outro fica horas a fio lendo livros por si em esquemas de auto-planejamento das leituras, aposta no último. Tuas chances serão 99%.

Este articulista declara publicamente que padeceu de vários traços de analfabetismo funcional até os 34 anos, altura em que era advogado e dono de escritório há 10 anos, tinha 2 pós-graduações, 1 MBA e várias extensões universitárias, mas “leitura propriamente semântica mesmo” tinha pouco.

O “salvamento” foi “extra-escolar” e atualmente, aos 51 anos, com muito gosto, lê a média de 60 obras por ano, incluídos tratados de densidade filosófica inalcançáveis ao público universitário, sem falsa modéstia. O despertar do gosto pela leitura foi por peças de teatro, gênero que nunca lera antes. Depois, foi fácil transpor a ação prazerosa para vários outros domínios e num esquema de progressão.

O exemplo acima é registrado para prover resposta afirmativa a pergunta muito frequente que adultos nos trazem, que é de se “há como correr atrás do prejuízo?”.

Fonte: https://casadacritica.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário