Ruy Castro
Em comum com Marlon, Orson e Mingus: paixão por sorvete e peso em três dígitos
Ouço dizer que, hoje, mesmo que você se tranque num quarto vazio e escuro, calafete as janelas, não diga nem faça nada e sequer respire, alguém captará o que você estiver pensando, registrará suas preferências e começará a bombardeá-lo com ofertas nas mídias que frequenta. A ferramenta invasora pode ser um celular, mesmo desligado, que alguém deixou casualmente por alguns minutos do lado de fora do seu apartamento. Significa que a sua cabeça e o que se passa dentro dela já estão ao alcance de uma infernal inteligência no ciberespaço, que se aproveitará disso para lhe vender alguma coisa.
Impossível? Não. Já não há aviões que decolam, voam e aterrissam sozinhos? Geladeiras que conferem o próprio estoque, checam o que está faltando, mandam a lista para o supermercado, pagam pelo Pix e até dão gorjeta ao entregador? E roupas que, vestidas por você, medem a sua pressão, contam os seus batimentos e analisam o ritmo do seu piloro, baço e intestino grosso?
Tenho sido assolado na internet por itens relativos a sorvete. Todo dia, ao abrir o computador, recebo uma história do sorvete no Brasil (primeira sorveteria, em 1834, no Rio), um quiz sobre sorvete (qual era o sabor favorito de dom Pedro 2º? Pitanga), receitas para montar a perfeita banana split, dicas sobre como comer uma casquinha com quatro bolas sem me lambuzar ou a tabela da próxima Copa do Mundo do Sorvete, a ser disputada na Itália, em Rimini, terra do Fellini. É diabólico, faz-me salivar por um Chicabon.
Imagino que isso esteja acontecendo porque comentei há pouco com uma amiga que, se preciso, passaria só a sorvete pelo resto da vida. Na mesa, a menos de um palmo, desligado, mas atento, o celular dela.
O qual pareceu zumbir maldosamente quando acrescentei que tinha duas coisas em comum com Marlon Brando, Orson Welles e Charles Mingus: paixão por sorvete e peso em três dígitos.
Fonte: Folha de S. Paulo - 17/07/2022
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