Gustavo Krause*
O livro vai fundo na análise do abominável sistema escravocrata, seus efeitos maléficos e duradouros
Caro amigo
Recebi seu livro, A última trincheira da escravidão – Dez dias que não terminaram (Ed. Unipalmares), com generosa dedicatória. Ao concluir a leitura, percebi que crescera minha admiração por Cristovam, o múltiplo: engenheiro, economista, professor\educador, parlamentar, governador e rara combinação de brilhante pensador e homem de ação transformadora (pioneiro na criação e implementação da “Bolsa Escola”, a mãe de todas as bolsas como mecanismo dos programas de transferência de renda, em 1995, como Governador de Brasília).
Na medida em que a leitura avançou, fui descobrindo o pesquisador criterioso que permitiu ao historiador um olhar penetrante ao reconstituir o passado com foco nos dez dias que não terminaram, o decêndio que precedeu à sanção da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Beleza de trabalho! A partir da ata dos debates parlamentares, foi revelado o embate entre as forças do progresso e a dialética do atraso, confirmando a gigantesca dificuldade que é operar mudanças estruturais na sociedade. Os reacionários de sempre tentam incutir o medo do desconhecido e defendem mudanças periféricas para que tudo permaneça como está.
O estilo leve, agradável, está mais para o escritor de quase três dezenas de ensaios, ficção e livros infantis do que para o rigor do cientista social. Há momentos de genuína e contundente indignação frente ao fenômeno da desigualdade social. A marca pessoal aparece na criação e originalidade dos conceitos a tal ponto que o leitor foi brindado com esclarecimentos de oportuno glossário.
Na essência, você teve a coragem de atualizar o escravismo atual, o rendismo, e identificar o escravo contemporâneo.
Neste sentido, o livro vai fundo na análise do abominável sistema escravocrata, seus efeitos maléficos e duradouros em todas as esferas da organização social. Aí resgata ativistas e reformadores que abraçaram a causa abolicionista e reconhece o notável protagonismo do pernambucano, Joaquim Nabuco, referido por Gilberto Freyre como “O grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos”.
Não há melhor fonte de inspiração do que “O sol interior” do iluminado Quincas, o Belo, para quem “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do brasil”. O merecido destaque foi acompanhado uma lista de trinta marcantes defensores da causa entre eles, Rebouças, Taunay, Ruy Barbosa, Tobias Barreto, José do Patrocínio, José Mariano, Castro Alves, poeta Condoreiro que me transporta ao longínquo passado, quando menino, ouvia minha mãe declamar, emocionada, versos pungentes da obra imorredoura, “O Navio Negreiro”.
A leitura do livro me trouxe, também, à memória a notável obra de Nabuco, mais especificamente, a passagem do capítulo Massangana em Minha Formação onde ele escreveu sobre o “leite preto que me amamentou” e quando, em síntese genial, afirmou que o fenômeno da escravidão colocava frente a frente o senhor “inscientemente egoísta” e o escravo “inscientemente generoso”.
Ao aprofundar uma das raízes da nossa formação, a escravatura, como um “horror civilizatório”, você diz: “Cento e trinta anos depois da abolição, a perversão social prossegue: a escravidão mudou de estilo: os pobres se comportam hoje como os escravos de então, aceitando o destino imposto”. De forma destemida, defende “o salto para uma segunda abolição educacionista e propõe a implantação de um Sistema Único Nacional de Educação de Base, instituído em todo o País, equivalente aos melhores do mundo, para todas as crianças indistintamente”.
O livro menciona medidas mitigadoras da desigualdade educacional, enumera grandes educadores brasileiros e, com consistência, advoga um “ismo” verdadeiramente libertador: “O EDUCACIONISMO, visão moderna do abolicionismo que toma como vetor do progresso […] a educação de qualidade com equidade para todos”.
Caro amigo, teria muito mais a dizer. Já ultrapassei o limite jornalístico. Recebi o seu livro como um regalo natalino e tentei reparti-lo modestamente. Sua contribuição enriquece o pobre debate público brasileiro. Como cidadão, meu respeito e Muito Obrigado, Cristovam.
*Gustavo Krause foi ministro da Fazenda
Fonte: https://www.metropoles.com
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