Rossana Soletti*
Como a poluição farmacêutica pode afetar os oceanos e a nossa saúde
Quando foi a última vez que você tomou algum medicamento? Para boa parte dos brasileiros, a resposta será "há poucas horas". Quando ingerimos um remédio, os princípios ativos são metabolizados em nosso organismo, resultando em produtos modificados ou intactos que serão eliminados principalmente pela urina. Esta, por sua vez, vai parar no esgoto doméstico, cujos métodos de tratamento são pouco efetivos em eliminar os resíduos de produtos farmacêuticos, situação agravada pelos despejos da indústria farmacêutica, o uso de medicamentos veterinários na criação de animais e o descarte inadequado de fármacos. Resultado: centenas desses resíduos têm sido encontrados em pequenas concentrações em rios e oceanos, na água que bebemos e até em ambientes remotos como a Antártica.
Existe uma série de classes de medicamentos que apresentam potencial efeito deletério na saúde dos organismos aquáticos, como hormônios, antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e antibióticos. Algumas dessas substâncias podem se degradar rapidamente no meio ambiente, enquanto outras podem persistir por muito tempo, afetando os animais aquáticos. Um dos primeiros trabalhos sobre o efeito desses medicamentos na vida marinha foi feito em 2003 e repercute até hoje: peixes machos tratados com concentrações ambientais de fluoxetina, o princípio ativo do antidepressivo Prozac, ficaram mais antissociais e agressivos, ao passo que as fêmeas produziram menos ovos.
De lá para cá, centenas de estudos foram feitos, com resultados pouco animadores para diversos fármacos. Um dos medicamentos mais detectados é o anti-inflamatório diclofenaco, associado a uma notável queda na população de abutres na Índia, e conhecido por causar danos no fígado e nos rins de trutas. Outro exemplo é a ivermectina, um antiparasitário muito utilizado na criação de animais, e cuja venda para consumo humano cresceu cerca de 900% durante a pandemia por Covid-19, apesar de sua demonstrada ineficácia contra o coronavírus. A ivermectina pode persistir por muitos meses no sedimento oceânico, e estudos em laboratório sugerem que mesmo concentrações extremamente baixas no ambiente podem diminuir a população de pequenos crustáceos marinhos e de insetos aquáticos.
Um dos impactos mais significativos da poluição farmacêutica é contribuir para o desenvolvimento de resistência antimicrobiana. Micro-organismos como as bactérias podem sofrer alterações se expostos a antibióticos, tornando-se resistentes a eles, o que diminui a eficácia da terapia antibiótica, prolonga e piora doenças, enfim, é um problema global que tem piorado nos últimos anos. Estimativas atuais atribuíram à resistência antimicrobiana 1,27 milhões de mortes em 2019. Nos últimos anos, dezenas de antibióticos têm sido detectados em níveis acima do tolerado nos rios e oceanos do mundo, incluindo diversas regiões do nosso país. Em 2021, o Fórum Econômico Mundial listou o Brasilcomo um dos países com o maior risco de transmissão de resistência antimicrobiana pela água.
Outro grupo de medicamentos que oferece riscos ao ambiente e à saúde humana é o dos disruptores endócrinos, substâncias que podem alterar o funcionamento dos hormônios no corpo, oferecem riscos ao desenvolvimento, metabolismo, crescimento, reprodução, além de predisporem a diversas doenças. A poluição estrogênica por contraceptivos orais nos rios e lagos de diversos países, por exemplo, está associada à feminização de peixes machos, alterando sua capacidade reprodutiva.
Existe a possibilidade de que a poluição por fármacos possa afetar a saúde e contribuir com o declínio populacional de diversas espécies animais, mas uma grande questão é entender a magnitude desse problema na vida selvagem em cada canto do planeta. Estudos em laboratório são capazes de predizer a toxicidade de determinado medicamento para determinada espécie, mas no meio ambiente as concentrações desses contaminantes são dinâmicas, e eles interagem com outros poluentes, como resíduos de pesticidas.
Para enfrentar esse grave problema, precisaremos de muito investimento em ciência nos próximos anos, monitorando a quantidade de cada resíduo no ambiente brasileiro, entendendo os riscos que podem trazer aos animais e à saúde humana, e encontrando formas efetivas de descontaminação. No plano individual, devemos evitar a automedicação e precisamos fazer o descarte correto de medicamentos vencidos, levando-os a pontos de coleta em farmácias ou postos de saúde.
*Rossana Soletti é farmacêutica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fonte: Folha de S. Paulo
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