Ruy Castro
A paixão pelo grande saxofonista do jazz não se limita a fã-clubes. Ele tem até uma igreja nos EUA
Leio no The New York Times que, entre as mil seitas religiosas nos Estados Unidos, existe uma igreja dedicada a John Coltrane. Como você sabe, ele é o saxofonista que revolucionou o jazz nos anos 60 e cuja morte, de hepatite, aos 40 anos, em 1967, elevou ao grau de religião o culto que já se fazia a ele por motivos musicais. Mal Coltrane baixou à sepultura, um casal de pastores avulsos em San Francisco fundou a Igreja de, aportuguesando, São João Coltrane. Seu primeiro templo foi numa garagem, e os rituais, entre pneus e latarias, se davam ao som de "A Love Supreme", disco de Coltrane, de 1965.
Em seus 55 anos, a seita recebeu a adesão de potências como os Panteras Negras, o casal Ike e Tina Turner e da viúva de John, Alice Coltrane. Ganhou adeptos, prosperou e os pastores são hoje conhecidos como o Eminente Arcebispo Franzo W. King e a Máxima Reverendíssima e Mãe Suprema Marina King.
Infelizmente, em 1981, Alice resolveu fundar sua própria igreja, em Malibu, e processou o casal King por exploração da marca Coltrane e por botar letras em sânscrito nos temas de "A Love Supreme". O litígio só se resolveu quando os Kings aceitaram deixar de chamar Coltrane de Cristo encarnado —exclusividade de Alice—, reduzindo-o a santo padroeiro.
Um pouco da culpa por essa guerra santa coube a Coltrane. Em 1957, em heroína até as orelhas, ele disse ter ouvido a voz de Deus, que o mandou parar com a droga e trocar o sax-tenor pelo sax-soprano. Ao contrário de Charlie Parker, Billie Holiday e Bill Evans, que não O escutaram, Coltrane obedeceu, sobreviveu e, pelos dez anos seguintes, o jazz ganhou mais um gênio.
Por algum motivo, a Igreja de São João Coltrane nunca ficou muito tempo no mesmo endereço em San Francisco e, com a pandemia, mudou-se de vez para a internet.
Melhor assim. Evita que seus fiéis cruzem na rua com os devotos do ainda vivo São Sonny Rollins.
Fonte: Folha de S. Paulo - 19/03/2022
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