quinta-feira, 1 de setembro de 2022

O ESTRANGULAMENTO DO DEBATE POLÍTICO

Filomeno Moraes*
Dados de pesquisa recente do Datafolha (Folha de São Paulo, 31/7/2022) dão conta de que a metade do eleitorado brasileiro alterou o comportamento como consequência da tensão eleitoral. Assim é que 49% afirmam ter deixado de conversar sobre política com amigos e familiares nos últimos meses para evitar conflitos, diante do acirramento das paixões políticas. No que diz respeito à internet, 53% dos eleitores dizem ter mudado de postura nas redes sociais para fugir de atritos com amigos e familiares. Assustadoramente, tais dados são reveladores do estrangulamento do espaço público, com a angústia do debate político.

Diante de três situações de constrangimento ou coação apresentadas pelo instituto de pesquisa, 15% dos entrevistados revelaram já ter recebido ameaça verbal e 7%, física. Por sua vez, 54% afirmaram já ter vivido alguma situação de constrangimento, ameaça física ou verbal nos últimos meses, em razão de suas posições políticas.

Analisando o processo político chileno antes da emergência da ditadura do general Pinochet, Arturo Valenzuela constata o que ocorria na quadra mais virtuosa do processo político: “Na rua, nas lojas, nos locais de trabalho, nos trens ou nos clubes, sindicatos, organizações de ação católica, na maçonaria e inúmeros outros grupos e associações, os chilenos de todas as classes sociais respiravam e viviam a política partidária”. Assim, a estabilidade do comportamento eleitoral chileno era explicado em boa medida pela persistência das subculturas políticas radical, socialista, comunista, cristã de direita e cristã de esquerda, subculturas tais fortalecidas pelo debate político generalizado e tolerante.

Constatar metade dos cidadãos-eleitores do país deixando de conversar sobre a política com os amigos e familiares, eis aí um verdadeiro inimigo intimo da democracia brasileira, a contribuir dramaticamente para aquilo que Norberto Bobbio arrolou como um das promessas não cumpridas da democracia, qual seja “o cidadão não educado”. É generalizado o entendimento de que a educação para a democracia decorre, reflexamente e em boa medida, do exercício da prática democrática. E como ter prática democrática se não há discussão democrática?

Nas suas Considerações sobre o governo representativo, John Stuart Mill já chamava a atenção para a existência de cidadãos ativos e cidadãos passivos, salientando que de modo geral os governantes preferem os passivos, no entanto, a democracia necessita dos ativos. Prevalecendo os cidadãos passivos, anotava ainda Mill, os governantes acabam por transformar com prazer os seus eleitores num rebanho de ovelhas, dedicadas unicamente a pastar capim uma ao lado da outra. Evidentemente, hoje, está-se diante de uma nova congérie de problemas que, sobretudo, as inovações tecnológicas proporcionaram, como a disseminação das fake news, das meias-verdades, das pós-verdades a amalgamar milícias virtuais e reais, as quais, como se vê no Brasil, se utilizam da tolerância para praticar a intolerância, da democracia para cupinizar a democracia. Por outro lado, a emergência de uma extrema-direita, por demais agressiva e ruidosa, tolda ainda mais ambiência política nesta quadra eleitoral de 2022.

É fato que algumas iniciativas – como o movimento que culminou com a realização de duas cartas em defesa da legitimidade do processo eleitoral, da higidez da urna eletrônica e do primado do regime democrático e como a afirmação do Estado Democrático de Direito e da Constituição Federal proclamada durante a posse dos novos dirigentes da Justiça Eleitoral – são denotativos da reação da sociedade às ameaças de retrocesso democrático. Todavia, é claramente preocupante o diagnóstico trazido à luz pelo dados da pesquisa do Datafolha, tornando-se necessária a movimentação das instituições do Estado e, mormente, as instituições da cidadania no sentido de esconjurar o estrangulamento do espaço público e de, no sentido contrário, tornar o país num grande foro de discussão política tolerante, republicana e democrática.

*Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

Fonte: https://segundaopiniao.jor.br

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