segunda-feira, 26 de setembro de 2022

DIÁRIO DE VIAGEM AO URUGUAI

Mauro Calliari

No país de maior renda per capita da América Latina, inspirações para nossas cidades

Monte.VI.d.E.O

Todo nome esconde uma história e muitas versões. Para Montevidéu, a melhor de todas é a de que, quando os espanhóis navegaram ao longo da costa do Rio da Prata, foram contando os morros. Um, dois, três... no sexto morro, construíram a futura capital. Portanto, Montevideo (como se escreve em espanhol) é o Monte número VI (seis, em algarismos romanos), na direção do Este (leste) a Oeste. Não deixa de ser irônico que um país tão plano tenha sua toponímia ligada a um morrinho.

Cidades e vazios

O Uruguai é ainda mais urbanizado que o Brasil, mas com uma concentração espantosa: mais de 40% da população uruguaia mora numa cidade só, Montevidéu. Depois da capital, só existem oito cidades com mais de 50 mil habitantes.

Apesar de terem crescido já após a independência, o traçado das cidades é tipicamente espanhol, no formato de tabuleiro, que ganha o bonito nome de "damero". Na sempre imponente praça central, se encontram os símbolos do poder: o religioso —a Catedral—, o político —a Intendência— e o simbólico —a onipresente estátua de Artigas, às vezes em seu cavalo, como em Paysandú, às vezes a pé mesmo, como em Carmelo.

Ao redor do centro, as típicas casas geminadas, de um ou dois andares, convivem com lojas, papelarias, cartórios, escritórios, escolas e órgãos públicos. A mistura é boa e permite aquela variedade de pessoas — estudantes, aposentados, funcionários do comércio, que dá vitalidade às cidades. Nas calçadas, há pequenas gentilezas urbanas como banquinhos. Nada melhor para ver a vida passar enquanto se toma o seu mate.

A exceção é a região de Maldonado. Ali está Punta del Este, a queridinha dos turistas brasileiros e argentinos. O investimento estrangeiro ali parece estar reproduzindo pedaços de Miami, com aqueles prédios enfileirados, olhando para o mar. A urbanização recente se descola da passada. Em vez dos bulevares aerados, uma faixa de rolamentos contínua, com poucas travessias e uma monotonia urbana diferente do centro antigo, com seus cafés charmosos e comércio.

Dois cassinos exprimem essa mudança. O Enjoy, no antigo hotel Conrad, em Punta, é construído para receber quem chega de carro. O de Piriápolis, no Argentina Hotel, da década de 1930, ao contrário, recebia os turistas na estação de trem. O trem não existe mais, mas os turistas saem dos corredores largos e vão andar na rambla, a frente de mar que evoca —de longe— a Riviera Francesa.

Negócios brasileiros na paisagem

Além dos produtos nas gôndolas, duas marcas aparecem com frequência nas ruas das cidades uruguaias. Itaú e Igreja Universal. O Itaú, aliás, faz campanha ostensiva para captar clientes, num país em que grande parte das pessoas não têm conta no banco. Tudo se paga e se compra numas redes de lojas que oferecem de câmbio a pagamento de contas, loteria esportiva e ingressos esportivos.

Vacas e pessoas

Nos extensos campos, há, plantações e vacas. O pessoal diz que são mais de três vacas para cada habitante. Além de exportar, o Uruguai tem um dos grandes consumos de carne do mundo. Pedi um bife à milanesa num restaurantinho na bucólica cidade de Treinta y Tres e o que veio à mesa foi um filé de brontossauro com mais de dois palmos de largura. Perguntei à gentil garçonete se o pessoal comia isso tudo sozinho. "Por supuesto!".

Urbanidades

Gentileza parece definir as relações com as pessoas que surgem na vida dos viajantes. Raramente, em qualquer país do mundo, alguém é atendido em lojas, restaurantes, ônibus, loterias com tanta gentileza. Pedidos de informação que em outros lugares geram muxoxo, aqui são recompensados com explicações longas e detalhadas.

Me pergunto se isso é fruto da escala. Nas cidades menores, como Mercedes ou Mello, é normal que pessoas estejam menos apressadas. Mas isso também acontece em Montevidéu. Espremidos entre dois gigantes, a noção de nação é forte, e o fato de presidentes de espectros políticos terem se sucedido sem rupturas ou loucuras, é significativo. "Somos um país pequeno", parece ser a explicação para tudo o que acontece ou não acontece por lá.

Montevidéu e Buenos Aires

Comparações são sempre amplificações de uma percepção pessoal, mas são irresistíveis. Nessa simplificação, diria que Buenos Aires é a multidão. A multidão está em toda parte. Na feira de San Telmo passeando, em frente à casa Rosada protestando, na Bombonera e no Monumental de Núñez, cantando e pulando, num parque de Palermo tomando sol, na calle Florida saindo do trabalho. Nos últimos tempos há até multidões de estudantes fazendo fila nos quiosques para comprar as figurinhas da Copa, que estão em falta. "É a última Copa de Messi".

Em Montevidéu, ao contrário, saímos da multidão e entramos a escala do indivíduo. No pôr do sol, pequenos grupos de casais e pessoas sozinhas vão até a beira do rio Prata e se aboletam na rambla conversando baixo ou lendo. Na sede da prefeitura não há nenhum guarda para controlar quem sobe ao mirante do prédio para ter uma visão fabulosa da cidade. Alguns bairros, como Cordón, têm trechos tão bucólicos quanto as fotos de São Paulo na década de 1960. A calma ocorre até na chegada ao futebol. Fui a pé do centro até o histórico estádio Centenário e me aboletei ao lado de grupinhos que tomavam mate enquanto olhavam as botinadas dos jogadores do Peñarol.

Andar a pé

O traçado, a planura e a infraestrutura contribuem para andar a pé nas cidades uruguaias. Em Salto, vi crianças bem pequenas caminhando sozinhas para a escola. Em Colônia, carros param para qualquer pedestre. Em Montevidéu, o trânsito piora um pouco as coisas e há poucas travessias na avenida que segue a praia. Entretanto, chega uma certa hora que tudo se acalma e a cidade se esvazia. Na volta para o hotel, uma noite numa rua escura, me vi caminhando atrás de uma mulher sozinha. Em São Paulo, é comum que a pessoa se vire assustada quando isso acontece. Em Montevidéu, ela nem deu bola e seguiu seu caminho tranquila.

Gardel

Ah, sim. Carlos Gardel era mesmo uruguaio e nasceu em Taquarembó. O simpático museu fora da cidade não tem muita coisa, mas é pródigo em certidões e notícias que comprovam seu local de nascimento.

Fonte: Folha de S. Paulo

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