Lya Luft
Meu Deus, como andamos chatos, dei-me conta outro dia.
Eu mesma, por natureza otimista e amando tanto a vida, não paro de reclamar.
Muitas vezes teríamos razão: os impostos, o custo de vida, o desemprego, a violência, a prolongada adolescência dos filhos, a súbita falsidade de alguém em quem confiávamos tanto… a velhice complicada dos pais, a pouca autoridade das autoridades, a nossa própria indecisão.
Pensei que uma das coisas que anda ficando rara é a alegria, e comentei isso. Alguém arqueou uma sobrancelha entediada:
“Alegria? A palavra está até com cheiro de mofo, tanta coisa grave acontecendo, tanta indignidade, e você fala em alegria?”
Pois comecei a me entusiasmar com a idéia, e provocativamente fui contando nos dedos uma porção de motivos que vários no grupo teriam para se alegrar: a lareira crepitava na noite fria, uma amizade generosa circulava entre nós, três bebês dormiam ali perto, na sala ao lado ouviam-se risadas, e apesar de sermos mais ou menos calejados pelas perdas da vida, tínhamos os nossos ganhos em experiência, amores, conhecimento, esperança.
Nenhum de nós tinha desistido da jornada.
Nenhum de nós era um malfeitor ou um espertalhão, ao contrário: a gente estava na luta, tentando ser decente, tentando superar seus próprios limites.
Havia marcas da passagem do tempo em todos os nossos rostos: ninguém se fizera deformar pelo fanatismo da juventude eterna, mas todos se gostavam o suficiente para não se deixarem cair feito um trapo velho.
Olhei em torno e gostei de nós: ali se viam rostos interessantes marcados por dor e por alegria, bocas que haviam dado muita risada e pronunciado amorosas palavras, mas também chorado, dizendo coisas duras ou ternuras difíceis, ocultando queixas que deveriam ter sido lançadas.
Mãos que haviam acalmado bebês, conduzido crianças, confortado adolescentes, cuidado de velhos doentes, fechado pálpebras, dirigido automóveis, segurado ombros, vencido ondas, tapado a cara em pranto solitário — quantas vezes?
Éramos tão humanos, tão desvalidos e tão guerreiros, o pequeno grupo de amigos diante de uma lareira na noite fria, como centenas, milhares de outros, homens, mulheres, crianças, entre os mistérios do nascer e do morrer.
Repeti a minha pequena heresia:
“Eu acho que uma das coisas que anda faltando, junto com decência e mais esperança, é a alegria. A gente se diverte pouco. Andamos com pouco bom humor.”
Erico Verissimo, velho amigo amado, uma de minhas mais duras perdas, me disse quando eu era muito jovem: “Lya, em certos momentos o que nos salva nem é o amor, é o humor.”
Lembro disso, aliás, muitas vezes. Uma boa risada sem ironia ou sarcasmo ou um sorriso afetuoso salvam muitos momentos em que a gente só tem uma saída: rir de si mesmo, de sua própria falta de jeito. Quando inexistem explicações, palavras se tornam supérfluas e gestos demasiados, riso e sorriso podem ajudar.
Apesar da crise de autoridade em governo, família e escola, apesar da pobreza, insegurança e tantos horrores, pode nos confortar a idéia vagamente divertida de que o ser humano é trapalhão, às vezes é pérfido e mau — mas não inteiramente burro.
Afinal, a humanidade corrige aqui e ali seus desacertos: produz, além da violência, uma obra de arte; em meio à vilania, um gesto de inocência, e em plena desesperança um momento de beleza — que, segundo o poeta, é uma alegria que dura para sempre.
Lya Luft, crônica ‘Uma trégua para a alegria”, do livro ‘Em Outras Palavras. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.
Fonte: https://www.revistaecosdapaz.com
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