Quando vim morar em Minas, todos os meus amigos cozinheiros me incentivaram: são os melhores queijos, terá queijo à vontade, vai alcançar um upgrade na sua lasanha, aprenderá a fazer broas irresistíveis. E já me delegaram a obrigação de levar canastra em minhas visitas para o Rio Grande do Sul.
Nem fiquei com água na boca, mas com queijo na boca. Eu me senti um eleito pela Nasa a uma estação espacial na queijolândia.
Tive três anos de fartura e banquete, de um festival de pãezinhos crocantes, de pastéis deliciosos, de petiscos inexplicáveis com vinho, de jantares inesquecíveis.
Experimentei um tempo para esnobar e para assimilar os costumes, já tinha entendido que cada pessoa da família contava com o seu modelo na geladeira - frescal, curado, meia-cura - e nenhum poderia mexer no produto do outro.
Queijo aqui é tipo sanguíneo, pessoal e intransferível, só falta ter senha no pote para evitar roubos e desvios impróprios. Crianças e adolescentes escolhem o seu favorito e seguem fiéis à sua definição. Diferente da prática do meu estado, em que o queijo é de todos e escolhido um por vez no mercado.
Não sei se foi maldição ou olho gordo dos meus conterrâneos ou muita euforia de minha parte, só que aconteceu de descobrir que sou intolerante à lactose.
Tentei adiar o teste, prevendo o pior. Como desvendar uma doença rara que me impede de bancar o mineiro. Não existe mais como fingir com nuu ou uai.
Nas reuniões com a parentada da esposa, obrigo-me a me preocupar até com a manteiga de garrafa. Não sobra nada da minha personalidade antiga, a não ser a carne.
Perdi as pizzas depois dos jogos de futebol do meu time, ou os hambúrgueres gratinados, aqueles lanches quando estamos com preguiça de mexer nas panelas e no fogão e recorremos à tele-entrega, quebrando o ritual da mesa posta pelo sofá e bandejas. Sacrifiquei o desbunde das sobremesas, o doce de leite e o chocolate que elevavam a adrenalina do meu paladar. Houve o triste divórcio do queijo com a goiabada.
Surgiu uma vontade de chorar ao receber o diagnóstico no laboratório de exames. Ou esconder o resultado de minha esposa e filhos e seguir morrendo devagar e secretamente. O problema é que temos uma nutricionista em comum e seria delatado com facilidade.
Desapareceu parte significativa dos cardápios dos restaurantes. Não tenho direito nem a me esbaldar numa carbonara, minha refeição predileta, sem passar o dia inteiro no banheiro. Ou voltar a saborear o nhoque de mandioca com fonduta de queijo de Léo Paixão. O castigo é maior do que o prazer efêmero. A privada é o meu único destino, o meu único suplício, quando quebro as regras e rompo o regime definitivo.
Estou no paraíso vetado de desfrutar de suas benesses. Um diabinho dentro de mim zomba das fantasias: pode ver, jamais tocar.
Óbvio que aprendi a me controlar, a comprar itens apropriados, a simular uma rotina normal, a não me queixar na hora do almoço porque Beatriz não sofre de restrições e ainda pede o que comíamos antes juntos - e fecho os olhos sentindo o cheiro e a fragrância dos pratos proibidos.
Pelo menos, ainda me é permitido cheirar. Mas a tentação é um escândalo, mexe com os meus nervos, tensiono-me à toa, subtraído da igualdade de condições de meus pares.
É viável viver bem com intolerância à lactose, muitos partilham de igual cenário, não tenho dúvidas, menos em Minas, onde tudo é queijo.
Inveja não mata, mas nos emagrece.
Fonte: O Tempo
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