Aldo Bizzocchi
Foi o ex-presidente da república José Sarney quem eternizou a expressão “brasileiros e brasileiras”, com a qual iniciava seus discursos. Antes dele, o general-presidente João Figueiredo dizia apenas “meus amigos”. E Getúlio Vargas começava suas preleções com “trabalhadores do Brasil”.
Hoje, por influência da linguagem politicamente correta e das pautas identitárias, é cada vez mais comum ouvirmos “bom dia a todos e todas”, “Vossas Excelências senadoras e senadores”, e assim por diante. É bem verdade que a expressão “senhoras e senhores” é muito antiga e existe em todas as línguas – quem não conhece o famoso ladies and gentlemen? –, o que indica que a preocupação em abarcar na comunicação homens e mulheres (ou, antes, mulheres e homens) não é nova.
O problema é que, desde que se passou a disseminar a fake news de que o português é uma língua machista porque faz a concordância no plural pelo gênero masculino (por exemplo, brasileiros inclui homens e mulheres nascidos no Brasil), a distinção todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc., passou a ser sentida como uma necessidade e uma forma de deferência ao chamado “sexo frágil” – isto sim uma denominação machista, já que de frágil as mulheres não têm nada!
Tenho ressaltado muitas vezes que essa ideia de que línguas são machistas decorre da confusão que se tem feito entre quatro coisas diferentes: sexo biológico, gênero psicossocial, gênero semântico e gênero gramatical. Mas não custa esclarecer essa diferença mais uma vez.
Sexo biológico é uma característica que todos os seres vivos sexuados têm e é algo que herdamos “de fábrica”, ou seja, praticamente todo animal pluricelular, incluindo nós seres humanos, nasce macho ou fêmea – a única exceção são alguns animais hermafroditas, que são macho e fêmea ao mesmo tempo.
No entanto, o ser humano, por sua complexidade psíquica, desenvolveu paralelamente ao seu sexo biológico a característica de gênero psicossocial, a qual, por sinal, foi ignorada pela ciência durante muito tempo. Ocorre que muitos indivíduos têm uma orientação sexual distinta da majoritária heterossexualidade: são os homossexuais, os bissexuais e os assexuais (não confundir com assexuados, que são animais não dotados da distinção macho/fêmea). Além disso, independentemente de sua orientação sexual, muitas pessoas se reconhecem como transexuais ou transgênero (não recomendo a forma “transgêneras” e já comentei esse ponto em outra postagem), não binárias, gender-fluid e muitas outras denominações, o que tem feito a sigla LGBTQIA+ crescer cada vez mais (a despeito de o sinal + já abrir espaço para novos acréscimos).
Quanto ao gênero semântico, trata-se de como as línguas interpretam – ou interpretaram até hoje – a realidade dos sexos biológicos e dos gêneros psicossociais. Os gêneros semânticos são cinco
- masculino (seres animados do sexo masculino): pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);
- feminino (seres animados do sexo feminino): mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);
- neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos): caderno, felicidade (A ração dos cachorros acabou);
- sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado): criança, testemunha, vítima (O animal que vi na rua estava ferido);
- complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): ser humano, brasileiros, humanidade (O cão é um animal mamífero).
Esses cinco gêneros semânticos se manifestam nas diferentes línguas através dos gêneros gramaticais. Nesse sentido, há desde línguas com quatro gêneros gramaticais, como o sueco (masculino, feminino, neutro e comum) até línguas sem gênero, como o hopi, da América do Norte. O alemão e o inglês têm três gêneros, masculino, feminino e neutro, sendo que em alemão a distribuição dos seres entre esses gêneros é bastante arbitrária (por exemplo, Sonne, “Sol”, é feminino, Mond, “Lua”, é masculino, Mädchen, “menina”, é neutro). Já em inglês, seres com gênero semântico masculino ou feminino têm igualmente gênero gramatical masculino ou feminino (man é masculino e substituível pelo pronome pessoal he, woman é feminino e substituível por she); os demais entes são todos agrupados no gênero neutro. Os gêneros sobrecomum e complexo são frequentemente representados pelo pronome plural invariável they.
Por fim, o português e todas as línguas neolatinas com exceção do romeno têm dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, resultado da convergência entre o masculino e o neutro latinos num único gênero por força da evolução fonética fortuita.
Como resultado, o português subsume nos gêneros masculino e feminino conceitos portadores dos cinco gêneros semânticos e faz a concordância no plural pelo gênero gramatical masculino por uma simples questão de convenção decorrente da evolução histórica do idioma, desprovida de qualquer viés ideológico.
Aliás, justamente por não corresponderem exatamente a nenhum gênero semântico e menos ainda a gênero psicossocial ou sexo biológico, os gêneros gramaticais deveriam chamar-se gênero 1 e gênero 2 ou gênero marcado e gênero não marcado, como sugerem muitos linguistas. Isso acabaria de vez com essa ideia equivocada de que a língua é machista baseada na confusão irrefletida entre gramática, psicologia e biologia. Vou além: a própria denominação gênero dada a uma categoria gramatical deveria ser trocada por outra para não se confundir com a noção de gênero psicossocial. Fica aí a minha sugestão aos colegas linguistas e aos gramáticos.
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Em agosto de 1977, como reação à ditadura militar então vigente, o Prof. Goffredo da Silva Telles Junior leu diante das arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a famosa faculdade do Largo de São Francisco – a hoje histórica Carta aos Brasileiros, um libelo em favor da restauração do estado democrático de direito. Hoje, exatos 45 anos depois, quando nossa democracia volta a ser ameaçada, um novo manifesto é lido no mesmo local, com igual impacto social, desta vez batizado de Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Sinal dos tempos, a nova carta enfatiza a distinção de gênero e gentilmente coloca as mulheres em primeiro lugar. Pelo andar da carruagem, se dentro de mais algum tempo surgir nova ameaça à nossa democracia, terá de ser redigida uma Carta aos Brasileiros, Brasileiras e Brasileires.
Fonte: https://diariodeumlinguista.com
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