Por Janice Theodoro da Silva*
A terra e os terráqueos saíram fora do eixo. O planeta foi tomado pela desrazão, pela loucura.
A lógica, respeitável senhora, sofreu parada cardíaca, o sentido das coisas foi extraviado e a razão, implodida. Pergunto para os amigos, o que fazer para retornar à normalidade. Como regressar para os tempos de negociação pessoal, familiar e política. Tempos em que o ódio era reconhecido como vício e, não, virtude, tempos de experiências com resultados respeitados, de crença e aprimoramento do método científico.
Como explicar o estranho desejo pela cegueira, pela surdez, pela negação das evidências e pelo desprezo da lógica?
Qual a origem dos monstros produzidos pela razão?
É possível romper o circuito da ansiedade, doença do mundo contemporâneo? Explicar a opção pelo abandono da razão? Tranquilizar-se?
As sugestões dos amigos são variadas. Cansados de ouvir e repetir o mantra, vacinem-se, sugeriram sal grosso no banho. A tradição é antiga, com efeitos conhecidos até no Japão. O ritual, segundo os entendidos, serve para purificar os espíritos, em tempos de ódio. Tradição antiga, do Oriente ao Ocidente. Tentei um banho salgado para descarregar a ansiedade (descarrego). Nada. Ela permaneceu igual, mas dormi melhor.
Outra recomendação foi a respiração diafragmática. A receita envolve detalhes preciosos. É necessário contrair os músculos, abaixo dos pulmões e, na sequência, expandir a barriga. Confesso preferir encolher a barriga e não expandi-la porque, a barriga, por si mesma deprime o proprietário.
As duas tentativas não aplacaram nem minha angústia, nem a minha ansiedade.
A terceira foi banal. A ideia surgiu olhando para o celular, na página do oráculo, o Google, amigo certo de horas incertas. Ele tem resposta para tudo, para tolices, para vaidades e até para produções científicas de peso. Tentei. As respostas foram imediatas e variadas: Ter um hobby, repetir um mantra, visualizar um lugar tranquilo (entre trilhões de outras possibilidades). Só de pensar no hobby cresceu o meu desconforto. Não tenho hobby. Trata-se de atividades próprias dos habitantes do cume da pirâmide social. Repetir um mantra, talvez seja uma boa ideia, com analista ao lado, sem ele, perigo à vista. Com relação a imaginar um quadro açucarado com flores, pássaros e barulhinho d’água, o resultado, já experimentei: multiplica a ansiedade por 1000.
Para não desistir, optei por um tratamento de choque. A leitura do livro Como as democracias morrem, uma forma de olhar de frente a tragédia, para saber se a morte é lenta, rápida ou se tem remédio para a doença.
Dando voltas com o pensamento, com a memória, dos encantos e desencantos da vida, a luz se fez. Resgatei um encontro (depois de uma aula), inesquecível, com o professor Jean-Pierre Vernant. Timidamente eu fiz uma pergunta para o mestre sobre o Brasil, na época em crise com o impeachment do presidente Collor. E, ele gentilmente, me respondeu: quando você não tiver respostas para um problema pergunte para os gregos. Eles darão a chave.
Foi o que eu fiz. Escolhi o meu interlocutor preferido: Aristóteles.
Perguntei para ele os motivos de tanta cegueira e surdez de uma parte significativa da população do planeta. A conversa rolou solta. Detalhei o esforço das redes de comunicação brasileiras em informar para a população os riscos de contágio da covid, as atitudes lenientes do legislativo e a confusão no judiciário, chamado para apagar fogueiras próprias e dos outros poderes.
A primeira observação do mestre foi, depois de tantos séculos, ainda usarem letras gregas para numerar o vírus. A empatia cresceu entre nós. Na sequência introduzi a história da covid no Brasil. Reproduzi a argumentação dos médicos infectologistas sobre a doença, mencionei as provas apresentadas justificando a importância da população se vacinar. Atestei para o ilustre filósofo o número dos mortos e contaminados pela doença, mostrei as fotos impactantes das covas nos cemitérios, comprovei o exposto por meio de atestados de óbitos defendendo a importância das vacinas como o único meio cientificamente comprovado para evitar mortes e internações.
Expliquei para ele a minha dúvida, a minha angústia com tanta desrazão, mesmo diante da tragédia, dos mortos. Elucidei o fato de, apesar dos esforços, uma parte da população preferir não se vacinar em nome de crenças incoerentes, irracionais, selvagens. Fato ocorrido não só Brasil, como nos Estados Unidos e na Europa. Optaram pela surdez, pela cegueira acreditaram em fantasmas assumindo o risco de perder a vida, presumivelmente o bem maior de todos nós.
Por que, Aristóteles, eles abandonaram a razão?
A razão morreu?
Não. Ela não morreu, disse ele. Quem está em coma é a retórica argumentativa.
Como?
Dou um exemplo. A justiça no Brasil é morosa e a profusão de recursos, para a revisão da sentença ou decisão, depende da renda, do acesso a bons advogados para se propor uma ação. É difícil compreender haver justiça quando um assassinato é cometido e, mediante o uso da lógica jurídica, da boa argumentação dos advogados ou prescrição do delito, o criminoso (muitas vezes réu confesso) consegue escapar da condenação. A mesma dificuldade ocorre quando uma pessoa precisa se defender ao ser acusada de um crime que não cometeu e não tem acesso a bons advogados. Pior ainda, quando já cumpriu a pena e permanece presa em razão de formalidades processuais. Ilógico, não?
Outro caso que acompanhei foi o dos raciocínios matemáticos utilizados pelos economistas. Um festival de usos e abusos dos letramentos matemáticos e das teorias econômicas. Raramente a justiça, o bem comum e equidade pautam, de fato, as proposições dos especialistas. Poucas vezes assisti a revisões de rumo, confissões de erro, correções de rota enunciadas pelos economistas autores. A metáfora “deixar crescer o bolo para depois dividir” rendeu juros e correção monetária, para poucos. O bolo cresceu, um pouquinho, mas a tal equidade ficou para as calendas.
A linguagem matemática foi e é utilizada demagogicamente, acompanhada de indicadores econômicos (PIB) e, não raro, amparada por gráficos. Ela também foi utilizada, assim como a linguagem jurídica, para manter privilégios. O resultado é óbvio. A descrença na linguagem matemática com uso político cresceu, favorecendo a descrença na lógica argumentativa, sustentada por dados, “provas”. Assim, um falso argumento aqui, outro ali, um gráfico com parte das informações, tudo junto, fez o pobre contraditório se transformar em um exercício retórico vazio, distante do entendimento dialético da verdade. E, o pior, esqueceram das gentes, fim último da existência da retórica jurídica e das linguagens matemáticas.
Prevaleceu a justiça, a lógica e a ética? O ser humano vivenciou positivamente estas três categorias?
No deserto o calor faz ver, delirar, campo fértil para manifestações do sagrado, do ilusório e do poder. Lembre-se a origem do poder vinculado ao sagrado, suas justificações amparadas pela sofística, conduzida por um bom orador/pastor, demagogo, habilidade bem aclimatada às redes sociais.
É compreensível a desconfiança dos raciocínios lógicos e da lógica argumentativa quando eles foram e são utilizados para encobrir as faltas e falhas dos cidadãos e, mesmo, a verdade e materialidade das coisas. A doença mais frequente da democracia é a demagogia. Eu, Aristóteles, estudei e escrevi sobre o tema quando tratei de ética, de política e de retórica. Não quero complicar muito a discussão, mas atenção para a arte da retórica. Ela sistematiza, organiza e atribui sentido às diferentes linguagens e letramentos. Nela habita o principal problema da atualidade. O mundo digital é lugar preferencial para a manipulação das linguagens. Ela organiza os demagogos na rede, reforça estereótipos culturalmente solidificados, opta pelos velhos hábitos, evita as mudanças, desvitaliza as instituições caso prejudiquem o líder (mito). Assim “o povo passa a ser constituído pelos muitos que são senhores, não tomados um a um, mas todos juntos” (Política de Aristóteles). Prevalece a junção entre eles (rede) e não a razão.
Sim, os demagogos existem. Isto é fato. Onde foram criados? Não podemos esquecer, a sociedade é um todo, assinamos um contrato, participamos desta construção. Se um é humilhado, um outro se perdeu na vaidade. O egoísmo é parente da miséria; a mudança, da acomodação; a visibilidade, da invisibilidade. O processo de diferenciação social no Brasil e no mundo não poupou de humilhação, menosprezo, ironias, silenciamentos dos pobres e dos imigrantes. Despertou, entre os mais desprovidos (de dinheiro, educação ou cultura), o desejo, o apetite de um agir junto, desfrutar da força reunida, independentemente das qualidades morais. Na sequência a ciência e os grandes consensos foram menosprezados, pelo puro prazer de se tornar visível.
O que fazer, Aristóteles?
Proposição: Restabelecer a relação entre justiça e a retórica jurídica.
*Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Fonte: https://www.pensarcontemporaneo.com - 23 de fevereiro de 2022
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