Eduardo Affonso (*)
A tentativa de implantar uma linguagem neutra, obrigando 213 milhões de brasileiros a incorporar novos substantivos (amigue, alune, patroe, empregade), pode até não ser uma ideia ruim de todo.
Se essa turma voltar ao poder (e ela está à frente nas pesquisas de intenção de voto), teremos a chance única de pegar carona no fim do machismo tóxico do idioma, aproveitar o inevitável processo de realfabetização e liquidar vários outros problemas da língua.
Com os novos adjetivos (progressiste, gorde, fasciste, golpiste), podíamos dar um jeito nos verbos irregulares.
Não há criança que não diga “eu fazi” antes de ser repreendida e adestrada a dizer “eu fiz” – que não faz nenhum sentido e vem sem qualquer explicação.
“Fazi” é, intuitivamente, o certo – e o cérebro (principalmente o infantil) é inteligente o bastante para entender conceitos, generalizá-los e colocá-los em prática. Cada verbo irregular é obstáculo ao aprendizado, uma freada brusca nas sinapses, um “volte duas casas” na compreensão de como funciona essa abstração maravilhosa que é a linguagem.
Se a criança diz “eu comi, eu li, eu corri”, por que haveria de estar errada ao dizer “eu queri, eu sabi, eu trazi ou eu cabi”? Acabemos com o falocentrismo do masculino genérico e com as irregularidades verbais, de uma tacada só.
Como vamos ter novos pronomes inclusivos (elu, minhe, nenhume, outre, cuje), que tal eliminar os privilégios ortográficos? Poderíamos começar pela palavra “exceção”, que costuma ser escrita das mais variadas formas – excepcionalmente, até da forma correta.
Pronomes neutros e tratamento igualitário à grafia – isso, sim, é uma pauta democrática. Se o som é de S, só o S deve ter lugar de fala (ops, de escrita). Não à apropriação fonética feita por Ç, SS, SC ou X. Exceção vira “esesão” – e, assim, até ministros do atual governo serão capazes de escrever palavras difíceis como “acesso” e “impressionante” (doravante, tudo com S). O mesmo valerá para o que soe como Z ou como J. Quem corrige prova do Enem poderá se ater apenas ao conteúdo, sem uma síncope a cada batatada ortográfica.
Com particípios também passados a limpo (eleite, derrotade, auditade, ressentide), será hora de abolir o hífen. Por que guarda-chuva tem hífen e mandachuva não tem? Por que não tem hífen em camisa de força e tem em água-de-colônia? “Fora, hífen!” viria se juntar às faixas de “Fora FHC!”, “Fora Temer!”, “Fora Bolsonaro!” e “Fora ____!” (preencher com o nome do próximo presidente que não for de esquerda). Vírgula separando o vocativo, por favor.
Mas pode-se também partir para a terceira via, que é ensinar a língua como se deve, entendendo que mudanças ocorrem naturalmente e que as supostas imperfeições têm uma história e só tornam o idioma mais belo, mais humano. Que não se obriga ninguém a nada, seja na linguagem, seja na política: conversa-se, articula-se, dialoga-se, trocando o “vencer” pelo “convencer” (etimologicamente, “vencer junto”).
Emília, a boneca de pano que resolveu reformar a natureza, colocou abóboras em árvores e jabuticabas em plantas rasteiras. Quem leu Monteiro Lobato sabe no que deu.
(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.
Fonte: brasildelonge.com
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