quarta-feira, 25 de maio de 2022

CATARATA, ADEUS

CATARATA, ADEUS
Ruy Castro

O que posso e não posso fazer entre as duas cirurgias

Minha oftalmo, dra. Marize Pereira, não pode saber que vou escrever esta coluna. Estou entre duas cirurgias de catarata. A do olho esquerdo foi há dias, a do direito será em outros tantos, e suas recomendações foram as de que, além do colírio de hora em hora, eu mantivesse certa distância do computador e evitasse abaixar a cabeça para calçar o tênis ou pegar clips no chão. Muito simples. O que não falta, no entanto, são palpites de amigos sobre o que posso e não posso fazer. Tantos palpites, aliás, que resolvi tomar nota para segui-los à risca.

Segundo eles, posso botar os telefonemas em dia. Ouvir futebol pelo rádio. Escutar o que me falta de Duke Ellington. Tomar sorvete. Escrever mentalmente. Comer banana. Assobiar --se não souber, como é o caso, aprender. Cantar —de preferência, a sotto voce ou à bocca chiusa. Jogar bilboquê —esporte abandonado há décadas. Contar piadas —prática hoje quase clandestina, já que elas só têm graça se forem politicamente incorretas. Descascar tangerinas. Passear nas Paineiras. Dormir.

Em compensação, a lista do que não posso fazer é enorme e está exigindo grande força de vontade. Eis algumas. Tirar cisco do olho. Piscar (e menos ainda perto de uma mulher —posso ser mal interpretado). Reler "Guerra e Paz". Ler de modo geral —bulas de remédio e informação nutricional em potes de iogurte, então, nem pensar. Participar de seminários sobre a Semana de Arte Moderna. Tocar pandeiro.

Enfiar a linha numa agulha. Procurar a dita agulha num palheiro. Procurar o dito palheiro. Praticar tiro ao alvo. Dançar funk. Jogar malabares. Disputar maratonas. Ter crise de soluços. Entrar em combustão espontânea. Ir de férias para a Ucrânia.

E mais proibido do que tudo: ver televisão. Bolsonaro ou um de seus asseclas pode aparecer na tela e eu me perguntar se vale a pena voltar a enxergar direito.

Fonte: Folha de S. Paulo

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