Myrthes Suplicy Vieira (*)
Quando a polícia carioca, mesmo contra a determinação do STF, intensificou as operações contra o tráfico de drogas nas favelas que resultaram em dezenas de mortes de moradores e pessoas que não tinham nada com isso, fiquei chocada com a violência desmedida mas não protestei porque não moro no Rio de Janeiro nem em comunidades de morro.
Quando a polícia paulista introduziu desafiadoramente blindados e atiradores de elite nas recentes incursões na Cracolândia, fiquei aterrorizada com a possibilidade concreta de reação armada dos traficantes e consequente morte indiscriminada de passantes e moradores, mas segui em frente cuidando dos meus afazeres porque não sou viciada, nem tenho parentes e amigos nessa condição, e também não moro nas adjacências.
Quando a polícia rodoviária federal de Sergipe jogou gás de pimenta e gás lacrimogêneo dentro de uma viatura matando um esquizofrênico negro cujo único deslize era estar pilotando uma moto sem capacete, fiquei indignada com a inadmissível barbárie, mas acabei me distraindo com a necessidade de cuidar da minha própria sobrevivência: afinal, os preços dos alimentos estão pela hora da morte, os planos de saúde já são impagáveis e ninguém consegue encontrar estabilidade financeira, nem empregos mais bem remunerados.
Quando chuvas torrenciais ocasionaram centenas de mortes em diversos estados brasileiros, fiquei, é claro, entristecida diante de tanta dor e sofrimento, mas lembrei que isso é consequência inevitável do aquecimento do planeta – e que, portanto, resta muito pouco para nossas autoridades fazerem para evitar a repetição dessas tragédias. Além disso, não moro em área de risco e respeito o meio ambiente, fazendo coleta seletiva.
Quando bandidos disfarçados de entregadores de moto passaram a assaltar e, por vezes, matar pedestres desavisados para roubar seus celulares, comecei a me sentir um tanto insegura, mas logo espantei as sombras porque não uso celular em público e nunca ando sozinha à noite. É bem verdade que tenho irmãos, sobrinhos e amigos que se expõem a esse risco, mas sei que eles estão um pouco mais protegidos por não circularem em bairros de periferia e morarem/trabalharem em áreas onde há maior presença de forças de segurança.
Quando o número de casos de violência doméstica, feminicídio e pedofilia começou a crescer em função do confinamento na pandemia, roguei a Deus que ela terminasse o mais rápido possível e que nossas autoridades encontrassem algum jeito de serem mais efetivas no combate a esses males; mas não me incomodei tanto, uma vez que moro sozinha e não tenho filhos.
Em suma, sei e sinto que involuímos como sociedade, que a realidade brasileira adquiriu tons surreais e macabros e que não há perspectivas concretas de construirmos um futuro promissor para nossa pátria. No entanto, mesmo perplexa com tantas catástrofes, permaneço fiel a meus princípios democráticos: sou uma cidadã de bem, cumpridora dos meus deveres sociais, pago meus impostos regularmente, sou instruída, bem-informada politicamente, temente a Deus e não me meto na vida das pessoas. Se ao menos meus compatriotas entendessem que a cada ação corresponde uma reação, as coisas seriam muito mais fáceis de administrar, tenho certeza.
Sou a favor das liberdades individuais: cada um que cuide do seu próprio nariz e evite como puder colocar-se em situações de perigo e confronto social, racial, religioso, político e de classe.
E você?
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
Fonte: brasildelonge.com