Mariliz Pereira Jorge
Dia após dia, rede social deixou de ser divertida e se tornou um lugar hostil, onde as pessoas são más
O Twitter é máquina de moer gente, movida por gente. Vejo usuários se afastando, outros fechando os comentários e retuítes. Cada um lidando com seus limites. Cheguei ao meu. Ainda não sei se abandono a plataforma ou apenas fecho a conta para novos seguidores/leitores.
Comecei a rabiscar este texto ainda na semana passada, antes de o jornal New York Times ter enviado um comunicado a seus jornalistas sugerindo que se "afastem" ou que "reduzam significativamente" a presença na plataforma. Uma das razões alegadas é o assédio que os profissionais sofrem, além da questão de que os jornalistas podem "estar focados excessivamente em como o Twitter reagirá ao nosso trabalho, em detrimento de nossa missão e independência". O editor-executivo do jornal, Dean Baquet, diz também que "podemos dar respostas improvisadas que prejudicam nossa reputação jornalística".
As palavras de Baquet me acertaram em cheio. Ele descreveu exatamente o que tenho pensado sobre as consequências profissionais e pessoais de dedicar à rede não apenas tempo, mas a distância necessária para o pensamento crítico e independente que todas as pessoas deveriam ter, ainda mais relevante no jornalismo. Além do custo emocional que tem se revelado impagável.
Entrei no Twitter em 2017 a pedido de um empregador, mas só passei a usar a plataforma em 2018, nas eleições. Conheci muita gente interessante, fiz amigos, tenho leitores muito queridos. Mas a conta que chega com o tempo é muito alta.
Há aspectos do seu funcionamento que transformam a experiência em algo que se mostra cada vez mais desagradável. O último problema mostra mais uma vez a vulnerabilidade dos usuários. Por meio de um formulário oficial, qualquer um pode denunciar contas em nome de terceiros. Esta semana recebi por email a "resposta" de que a minha suposta denúncia não havia violado as políticas de segurança da rede.
Não havia feito nenhuma reclamação. O Twitter disse que não considera o problema uma falha. A sua conta pode ser usada para que sejam feitas falsas denúncias em seu nome, mas o Twitter não vê problema nisso.
Para o Twitter, o Twitter nunca tem culpa de nada. Fake News, discurso de ódio, ameaças, injuria, difamação. Tudo isso rola solto. Há ferramentas recentes para que as denúncias sobre desinformação contra Covid, eleições. Funciona? Claro que não. As contas, inclusive as verificadas com o selinho azul, agem sem serem importunadas. A de Jair Bolsonaro é uma delas. Raras foram as vezes em que publicações do presidente foram derrubadas.
O efeito nefasto de uma rede que cresce cada vez mais amparada no engajamento de tudo que há de pior no comportamento é a devastação da saúde psicológica dos seus usuários. Ao ler alguns estudos sobre o impacto das redes sociais, me senti completando uma cartela de bingo. Ansiedade. Depressão. Medo. Infelicidade. Raiva. Insônia. Bullying. Paranoia. Necessidade de pertencimento. Queda de autoestima. Bingo mil vezes.
Impossível não se sentir uma pessoa horrível apenas pelas coisas que lê sobre você mesmo. Sabemos o que acontece com gente que não tem estofo mental, apoio psicológico para lidar com acusações e julgamentos. E, por mais equilibrado que você seja, pequenas feridas vão se abrindo e nem sempre cicatrizam. Recentemente, me perguntei: por que eu estou fazendo isso comigo? O Twitter não paga as minhas contas, apenas alimenta a vaidade de ter milhares de seguidores. E para quê? A que custo?
Fui chamada de racista, misógina, assassina de bebês, fora todo o glossário básico do hater: puta, vadia, vagabunda, porca, porca imunda, velha, acabada, decadente. Todo tipo de esculhambação sobre minha aparência, idade, raça, estado civil, orientação sexual. E muitos, muitos ataques por causa do meu posicionamento político vindo de todo o espectro.
Descobri que no Twitter liberdade de expressão é relativa. E não falo sobre a licença para ofender, agredir, cometer crimes. Por ser branca, de classe média, heterossexual, não ter filhos, sou desautorizada constantemente de opinar sobre determinados assuntos. O "lugar de fala" deixou de ser um instrumento importante para dar visibilidade e protagonismo a indivíduos que sempre tiveram suas vozes caladas. Hoje, é reivindicado para calar opiniões dissonantes e afunilar o debate.
Descobri no Twitter que, por ser branca e de classe média, não posso praticar uma religião de matriz africana. Quando nasci, minha mãe já era mãe de santo. O terreiro de umbanda ficava nos fundos da casa dos meus pais, no interior do Paraná. Avós, tias e tios recebiam entidades. A umbanda e o candomblé não entraram na minha vida no carnaval de Salvador. Mas para o tuiteiro, sou "macumbeira de boutique".
No Twitter funciona assim, se você não levanta bandeira de um partido ou de um político, automaticamente está do outro "lado", o do inimigo. Como jornalista, não é meu papel reforçar nenhuma torcida e certamente vou desagradar um grupo ou outro. Se não hoje, provavelmente, amanhã.
Por conta disso, pegam um trecho qualquer de texto e usam de acordo com a necessidade de provar que jogo do outro lado. Como sabemos, é proibido criticar, debochar, ironizar políticos, criaturas alçadas ao posto de heróis.
No começo, entedia o Twitter como uma mesa de bar em que as pessoas vão chegando, conversando sobre todos os assuntos, alguns sérios, outros nem tanto, e no final, todo mundo, concordando ou discordando, já marcava o próximo papo. Mentira. Todo mundo se desrespeita. Quanto mais grosseria, mais likes, mais compartilhamentos.
O passatempo preferido do tuiteiro que sabe como o Twitter funciona é ver gente sendo humilhada, xingada, cancelada. É um tribunal medieval, ninguém tem direito à defesa. Hoje, eu já penso por qual vírgula serei cancelada. Às vezes, nem isso. O cancelamento por algo que você nem disse, mas porque alguém jura que era aquilo que você queria dizer. Quero dividir aqui alguns episódios da lógica do tuiteiro.
Meu dia de misógina: defendi a liberdade de expressão de um humorista que xingou uma deputada. Não defendi o comportamento dele, pelo contrário. Acho desprezível. Repudiei a censura prévia e o uso da máquina pública para processar um cidadão. Poder falar (e arcar com as consequências) é diferente de defender a ação. Selecionaram um trecho do vídeo em que falo isso e cortaram o restante do meu posicionamento. Já escrevi sobre o episódio, gravei vídeos, mas para o tribunal é mais conveniente me colocar no trono da misoginia seletiva.
Não é sobre "lugar de fala"? Eu sei o que é ser chamada de coisas horríveis e sei que cabe à justiça julgar se são ofensas ou não, e o impacto que elas têm. Cabe a mim procurá-la se achar que devo. Mas defender censura prévia e dizer o que pode ou não pode ser dito, não contem comigo. Não tem limite? Tem. A lei.
Fui acusada de racismo, claro. No episódio Smith X Rock, condenei a agressão. Sugiro a leitura do artigo "O tapa que uniu a esquerda e a direita", publicado na Folha. Disse que não dá para abraçar a barbárie em nome da civilidade, quem faz isso é o bolsonarismo. No Twitter, um leitor fez um comentário muito pertinente sobre "comportamento primitivo". Concordei. Não era sobre Will Smith. Era sobre grupos políticos, culturais, religiosos. Tratava de como somos tomados por uma força primitiva, que reduz nossa capacidade de discernimento. Quando ativamos o modo sobrevivência e reagimos sem civilidade. Como se o cérebro desse um curto-circuito e liberasse nossa agressividade.
Apenas a parte "comportamento primitivo" foi retuitada umas 400 vezes, ligando o conceito ao ator, com ilações sobre o meu "real propósito" que era ser "racista". O racismo é abominável, racistas são abomináveis. Quem acha ok ser acusado de algo abominável? Racistas devem ser processados, julgados, presos. Se cometi um crime, essas pessoas deveriam me processar ou não tratar esse assunto de forma leviana. Mas é muito mais fácil tacar o selo de racista em alguém, mesmo que não haja o menor fundamento, do que combater o problema real.
Perfis bolsonaristas, incluindo o de parlamentares, estão por trás de ataques organizados a várias mulheres jornalistas. Gabinetes e assessores pagos com dinheiro público produzem posts com insultos, ofensas, ilações e nada acontece. Mais de uma vez, espalharam nas redes montagens em que me chamam de "genocida" ou "assassina de bebês" por minhas críticas ao presidente e pela defesa da descriminalização do aborto.
Em ano de eleição, os ânimos tendem a ficar piores do que já estão – como se isso fosse possível. A pressão e a chantagem ideológica já mostram que a plataforma não é um lugar para o debate saudável, para a defesa plena da democracia e, mais importante, para o trabalho independente da imprensa e o exercício solitário e necessário de quem escreve sobre o país de forma crítica e não apaixonada.
Dia a dia, por pequenas e grandes coisas, o Twitter deixou de ser divertido. É um lugar hostil e as pessoas são más. É como entrar num campo minado. O segredo para ser feliz é só escrever obviedades. De preferência o pensamento mais raso e preguiçoso, mas que não vá incomodar os grupinhos e suas cruzadas. Não interessa se você usar a razão, seguir a régua das leis. Leis são ignoradas e se você as defende é porque não entendeu as camadas mais profundas da discussão. Tudo é relativo, o debate, as liberdades, a democracia. Cada voz que se cala é mais um sinal de que afundamos num pântano de mediocridade. Esse texto, por exemplo, é o suficiente para que eu seja banida. Mais uma vez. Como já sou cancelada, não me importo. Ainda não consegui apertar o botão para deletar a conta, mas aos poucos tenho me tornado apenas observadora da rinha em que o Twitter se transformou.
Fonte: Folha de S. Paulo
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