A FALTA QUE UM DENTE FAZ
Paulo Pestana
Roach, em inglês, é barata, o inseto caseiro. Mas é também sinônimo de dente postiço, que no Brasil, foi aportuguesado com o apelido de rote. Hoje, como desenvolvimento da ortodontia, é conhecida como prótese dental removível, instalada enquanto não se faz um implante. É quase o mesmo que dentadura, chapa, perereca, coregão.
A história do nosso dileto amigo começa com um dente que cai e a necessidade de tapar o buraco com urgência, o que foi feito com um rote simples. Era só para durar o tempo de fazer o implante, que foi sendo empurrado para a frente, conforme a crise financeira avançava. Ocorre que o mesmo tempo – esse deus implacável – bambeou a estrutura.
Dava para tomar um consomê, um biscoito no leite e até uma carne moída. O resto complicava. Mastigar um bife era um tormento, com a prótese sambando no meio dos outros dentes, arrecadando pedacinhos de carne e forçando a gengiva. O mesmo acontecia com pizzas, pães e até macarrão – dor e agonia se misturavam.
Ao final das refeições ele tinha que se levantar rapidamente para ir ao banheiro e fazer a assepsia, o que era constrangedor, porque se houvesse mais alguém usando a pia, tinha que ficar enrolado. Nunca que ele iria tirar a perereca da boca na frente de outra pessoa.
Diante das limitações ele imaginou desenvolver uma técnica que trouxesse um pouco mais de praticidade. Faltava colocar a esperteza à prova.
E foi jantar com a esposa, uma noite especial num restaurante singular. Escolhidos os pratos, tudo corria muito bem, com vinho nas taças. Quando os garçons tiraram as redomas metálicas que cobriam os pratos e disseram voilà houve aquela sensação de prazer mútuo.
Discretamente, o amigo pegou um guardanapo de papel e fingiu limpar a mancha do vinho tinto na boca, enquanto tirava agilmente o rote da boca, enrolando-o e deixando ao lado do prato. Conversa boa, comida excelente, risadas, um clima que o casal – junto há tantos anos – não experimentava desde muito tempo.
O detalhe é que o amigo é maníaco com limpeza; chega às raias da alienação. Nas mesas de bar acena constantemente para o garçom tirar copos usados, limpar detritos, enxugar líquidos. Nem o ambiente fino do restaurante conteve a obsessão. Assim que terminaram os pratos principais, pediu uma limpeza geral.
A conversa o distraiu ainda por alguns minutos, mas enquanto a esposa apreciava as sugestões de sobremesa no menu, passou a língua nos dentes e sentiu a falha. Olhou para os lados a procura do embrulhinho de guardanapo e nada, bateu o desespero. Esqueceu a fleuma, levantou-se e disse ao o garçom: “Você levou meu dente!”.
Atônito, o rapaz fez cara de quem não entendeu. Ele explicou a situação, pediu para procurarem na cozinha, no lixo, onde fosse. Foi até os fundos do estabelecimento e viu o contêiner onde são jogados os detritos. Desolado, desistiu; nem se achassem a prótese ele colocaria de novo na boca. Ficou sem dente e com uma certeza: algum mendigo ficaria menos banguela naquela noite.
Publicado no Correio Braziliense em 3 de abril de 2022
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