Ruy Castro
Kiev pode cair, mas só se poderá dizê-la dominada depois que os russos matarem seu último cidadão
No apogeu da luta armada contra a ditadura militar, em 1970, e vendo um de seus filhos envolvido nela, Nelson Rodrigues escreveu desesperado: "Não se sai no tapa com o tanque". Referia-se à disparidade de forças —o frágil ser humano contra o monstro de aço. Mas Nelson se enganou. Sai-se no tapa, sim. Está acontecendo em Kiev e em outras cidades da Ucrânia: cidadãos desarmados se jogando contra os tanques russos, subindo neles, chutando seus para-brisas, perseguindo-os pela rua e lhes jogando pedras. Dentro deles, os invasores devem estar atônitos. Vladimir Putin não os avisou que enfrentariam gente tão brava e patriota. Afinal, os ucranianos não eram "russos"?
Cena parecida se deu em junho de 1989, em Pequim: a do rapaz anônimo que, depois do massacre de estudantes pelo governo chinês na praça da Paz Celestial, postou-se diante dos tanques e os desafiou a passar por cima. Em varandas próximas, quatro fotógrafos americanos e um cinegrafista registraram a cena: o jovem, com uma sacola em cada mão, como se voltasse do mercado, a centímetros do primeiro tanque. Quando este tentava contorná-lo, ele também se movia e voltava a encará-lo. As fotos foram vazadas para o exterior e renderam primeira página em toda parte. Não se sabe o destino do herói. Sabe-se que é —ou foi— um herói.
Nesta quarta (2), a Folha falou de um pai ucraniano, 40 anos, que pôs a mulher e dois filhos num trem para fora do país, sem lhes contar que dali iria se alistar. Os homens ucranianos de 18 a 60 anos não podem ir embora, mas ele disse que ficaria de qualquer maneira para lutar
Enquanto isso, há uma semana, tropas russas descobriram-se em guerra depois de lhes ser dito que iriam participar de simples manobras. Há uma diferença.
Kiev talvez caia em questão de horas, ao peso de inúmeras mortes, principalmente de civis. Mas só se poderá considerá-la dominada depois que os russos matarem seu último cidadão.
Fonte: Folha de S. Paulo
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