Esper Kallás
Embora muitos achem que a pandemia esteja no fim, o que fica nos dejetos conta outra história
O esgoto pode causar repulsa, mas sua criação mudou a história da civilização. Sem ele, a constante exposição a agentes infecciosos e tóxicos poderia levar ao aparecimento de inúmeras doenças, comprometendo a qualidade de vida, com impacto na longevidade da população.
O desenvolvimento dos sistemas de esgotos corre paralelamente à nossa história evolutiva. Projetos mais rudimentares, como nos primeiros assentamentos do início da civilização, foram aprimorados na Grécia antiga e por outros povos. Um grande salto ocorreu na idade moderna, no século 19, coincidindo com o avanço do conhecimento sobre os patógenos que causam doenças transmissíveis.
Hoje, bilhões de litros de água com dejetos são levados todos os dias, advindos de aglomerados populacionais, para serem tratados em sistemas complexos.
Com tais dejetos, correm oportunidades de obtenção de informações importantes sobre a saúde e a doença humana. A ideia de monitorar as características do material do esgoto é antiga, mas se amplia com o uso da tecnologia.
O primeiro estudo que ganhou destaque foi divulgado na Inglaterra, em 1854. Documentando a detecção do vibrião do cólera nos esgotos de Londres, estabeleceu-se a relação causal com a doença. Seguiram-se estudos que mapearam a transmissão dos vírus causadores da poliomielite e da hepatite A.
Houve um grande salto de qualidade nas técnicas de detecção de material genético dos germes. Consegue-se, assim, melhor sensibilidade para enxergarmos quais os agentes que andam se espalhando por aí.
Há como saber o que vem acontecendo com a Covid-19 olhando para o esgoto? Sim. Embora sendo doença de transmissão respiratória, um número significativo dos doentes elimina o Sars-CoV-2 nas fezes. Com isso, tem-se mais uma ferramenta para predizer se uma onda de transmissão está chegando.
E como está a pandemia agora? Embora o Brasil e outros países das Américas estejam experimentando uma retração, os números na Europa e, principalmente, na Ásia estão em expansão. Chama muito a atenção o aumento de casos em Hong Kong, onde ocorre um colapso no sistema de saúde.
Por que não se vê algo parecido nas Américas? Alguns acreditam que é porque já ocorreram casos demais que, associados à cobertura vacinal, teriam levado à suficiente proteção populacional. Mas não há como afirmar isso.
Dados de monitorização do esgoto nos EUA, anunciados esta semana e divulgados pelos Centros para Prevenção e Controle de Doenças (CDC), apontam para um aumento significativo na presença do material genético do Sars-CoV-2 em várias cidades americanas. Em alguns casos, o aumento na detecção excede mil vezes.
É cedo para dizer que a pandemia acabou. Ao contrário, sua capacidade de disseminação persiste e agora parece ter chegado a vez de parte da Ásia, poupada nos dois anos iniciais.
Outra onda pode ocorrer nas Américas e, portanto, no Brasil? Sim. Quer seja como resultado da flexibilização das medidas de prevenção ou pela chegada da nova sub-variante da ômicron, denominada BA.2.
Não há como prever se outras variantes, com capacidade de "driblar" a defesa construída pelas vacinas ou por variantes anteriores, podem aparecer. Especialistas concordam que existe esta possibilidade.
Não é o momento para descuidarmos das medidas de vigilância. Quer seja com a identificação de novos casos, internações e mortes, quer seja com medidas indiretas, como o monitoramento de aparecimento do Sars-CoV-2 no esgoto.
Saber, com antecedência, se há novas ameaças chegando aumenta as chances de nos prepararmos melhor.
Fonte: Folha de S. Paulo
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