Ricardo Araújo Pereira
Parte da comunicação depende dos movimentos que a boca faz, além do som da fala
Eu já devia ter desconfiado, porque tenho tido bastante dificuldade em entender as pessoas. Desde que a pandemia começou, passei a ter consciência de que parte da comunicação depende do som das palavras mas outra parte se deve aos movimentos que a boca faz, e a máscara impede que eu os veja.
Às vezes, quando o meu interlocutor se encontra num balcão de atendimento, atrás de um vidro, tenho de fazer suposições, muitas vezes tragicamente erradas, sobre o que está a ser dito.
Do ponto de vista da higiene, está tudo ótimo: o vidro e a máscara, em princípio, impedem a transmissão de qualquer vírus. Infelizmente, impedem também a transmissão de mensagens. O resultado é uma conversa de bobos. Somos bobos muito saudáveis, mas não há dúvida de que somos bobos. Eu, pelo menos, sou.
Por isso, foi sem surpresa que li os estudos sobre a dificuldade que as crianças do ensino pré-escolar estão tendo para aprender português. Na verdade, elas não estão aprendendo português, estão adivinhando português.
Como é evidente, tudo tem as suas vantagens. Em princípio —pelo menos, assim o espero—, os alunos mais velhos estarão a aproveitar a oportunidade de terem máscaras a cobrir parte da cara para fazer barulhinhos irritantes que exasperam o professor, incapacitado de localizar os idiotas responsáveis pelo ruído. No meu tempo, era muito mais difícil e arriscado perturbar o normal funcionamento de uma aula. Espero que estes jovens tenham ao menos consciência da sorte que têm.
Claro que o professor também é apenas um par de olhos, pelo que é mais difícil perceber o momento em que ele fica verdadeiramente enfurecido, mas é melhor do que nada.
No entanto, este fenômeno, juntamente com a experiência do ensino a distância, que se revelou incomparavelmente pior do que o ensino presencial, indica que nós, enquanto espécie, temos absoluta necessidade de estarmos juntos e de olharmos para a cara uns dos outros. Quem diria. Imagino que se estejam a criar novos desabafos idiomáticos tais como: já estou farto de não olhar para a sua cara. Ainda bem.
Fonte: Folha de S. Paulo
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