Pedro Hallal
Sentimento está escondido pela vergonha que temos diariamente das ações dos nossos governantes
Era um domingo, 1º de maio de 1994. Como fã de Fórmula 1, eu estava vidrado na telinha acompanhando o Grande Prêmio de Ímola. Ainda estava no começo da corrida quando Ayrton Senna saiu da pista na curva Tamburello, num acidente que tiraria a sua vida. Desde meu nascimento, em 1980, nunca vi um luto daquela magnitude no Brasil. Foram dias, semanas, meses, de luto pela morte do nosso grande ídolo.
Uma das marcas registradas do Senna era o orgulho que ele tinha de ser brasileiro. Sempre que podia, lá estava ele com a bandeira do Brasil. Lembro que naquela época, ninguém se importava em quem o Senna havia votado nas eleições anteriores, ou em quem ele votaria nas eleições seguintes. O Ayrton Senna era do Brasil, de todo o Brasil.
Poucos meses depois, a seleção brasileira de futebol, treinada pelo Carlos Alberto Parreira (nunca soube em quem ele votava), conquistou o tetra na Copa do Mundo. Lembro dos pênaltis defendidos pelo Taffarel, lembro dos gols do Romário, e ninguém se preocupava, na época, se o Taffarel era de direita ou esquerda, se o Romário votava em A ou B.
Quando o Baggio errou aquele último pênalti, lembro da música do Senna começar a tocar, e imagino que não fui o único brasileiro a chorar de emoção. Depois de 24 anos, o Brasil voltava a ser campeão mundial, e não havia homenagem mais perfeita do que aquela: comemorar com a música do Senna. Lembro que os jogadores levantaram uma faixa em homenagem ao Senna. Lembro que o Romário, ao desembarcar no Brasil, acenava uma bandeira da janela do avião.
Já se passaram 27 anos desde aquele memorável 1994. E infelizmente, muita coisa mudou para pior. Usar o nosso símbolo nacional, por exemplo, virou demarcação ideológica. Quantos pais e mães deixam de comprar a camisa da seleção brasileira de futebol por medo de que seus filhos e filhas sejam xingados na rua ou confundidos com eleitores da Maria ou do João.
É óbvio que não estou defendendo aqui que as pessoas sejam neutras politicamente ou que tenham vergonha de exporem suas posições. Ao contrário: talvez nunca na nossa história recente seja tão necessário que os brasileiros mostrem que não aceitam governantes autoritários, que não aceitam desprezo à ciência, que não aceitam corrupção normalizada por meio de emendas parlamentares. Mas também é importante resgatar o lado bom do Brasil.
Exatamente por isso, foi tão marcante o que ocorreu nesse final de semana no Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1. Precisou que um piloto inglês, talvez o maior esportista da atualidade, nos lembrasse como é bom ter orgulho do Brasil. Ao homenagear Ayrton Senna, Lewis Hamilton nos fez voltar no tempo. E nos mostrou que aquele orgulho ainda existe, ele apenas está escondido pela vergonha que temos diariamente das ações dos nossos governantes.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho de ser um dos campeões mundiais do coronavírus. Temos orgulho é de sermos campeões mundiais no surfe.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho de termos uma mortalidade por Covid-19 cinco vezes maior do que a média mundial. Temos orgulho é de sermos cinco vezes campeões mundiais de futebol.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho das piadas homofóbicas dos nossos políticos. Temos orgulho é do talento de humoristas como Paulo Gustavo.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho de rachadinhas ou da propina das vacinas. Temos orgulho é dos cientistas nacionais que fazem milagres com poucos recursos.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho de nossos políticos terem seus vídeos banidos de redes sociais. Temos orgulho é dos clipes da Anitta ou dos vídeos do Felipe Neto.
Nenhum brasileiro de verdade tem orgulho da forma como os povos indígenas têm sido tratados atualmente. Temos orgulho é da bilheteria do filme "Marighella".
Está mais do que na hora de voltarmos a ter orgulho do Brasil. Mas para isso, precisamos de algumas mudanças. TicTac. TicTac. TicTac.
Fonte: Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário