UM SONHO DE 50 ANOS
Paulo Pestana
O otimismo anda em baixa no mercado da vida. Ler a primeira página de um jornal é embarcar numa viagem lúgubre como a daqueles antigos trens fantasmas de parques de diversão, que traziam uma surpresa aterrorizante a cada virada de esquina. A única diferença é que a gente sabia que no final a luz do dia iria surgir, radiante. O ser humano, que nunca foi muito digno de confiança, anda pior que nunca – e com viés de baixa.
Como o universo está sempre a conspirar, alguém lembra que a canção Imagine, de John Lennon, está completando 50 anos. É talvez a música mais otimista jamais escrita, embora a concorrência seja dura. Vai desde What a Wonderful World (Que mundo maravilhoso), eternizada por Louis Armstrong, até O Que é, O Que é, de Gonzaguinha, quando deixou de ser o cantor rancor. Mas Imagine tem algo a mais.
Há 50 anos o mundo não estava melhor do que hoje, embora os saudosistas queiram nos convencer do contrário. Em setembro de 1971 a guerra fria resistia, o Vietnã ainda vivia um conflito quente, Louis Armstrong havia morrido dois meses antes e, pior, Pelé faria sua última partida com a camisa 10 canarinha. Ainda assim, John Lennon encontrou motivos para pregar um mundo de paz e harmonia.
Ele disse que a inspiração veio de Grapefruit, um livro de poemas de Yoko Ono; logo ela, acusada de fazer tanto inferno que provocou o fim dos Beatles. “Naquela época eu era um pouco mais egoísta, um tanto mais machista e eu omiti a contribuição dela, mas a ideia surgiu diretamente de Grapefruit”, disse a John Blaney em A Vida de Lennon.
O compositor definiu sua canção, com algum cinismo: “É antirreligiosa, antinacionalista, anticonvencional, anticapitalista, mas é aceita porque é adocicada … agora eu compreendo o que se tem a fazer: transmitir sua mensagem política com um pouco de mel.”
Imagine tem bem mais que mel. Terceira colocada na relação das 500 melhores canções na lista da revista Rolling Stone, está entre as 30 músicas mais tocadas no século passado e mesmo aqueles que não gostam de músicas estrangeiras e preferem o samba se rendem ao primeiro acorde em dó e principalmente à força dos 22 versos cheios de fé, a partir de uma provocação – “imagine que o paraíso não existe”.
Há poucos dias um rapaz que amealhava uns trocados no Eixão Norte fechou os olhos e tocou a canção ao violão; muita gente parou e sentou durante os três minutos de duração do que parecia uma celebração, aplaudindo muito. Cantou em inglês mesmo, já que a versão em português, gravada por Paulo Ricardo nunca colou e nem faz justiça aos versos originais; individualiza uma questão coletiva desde o primeiro verso – “esqueça os seus problemas”.
A canção vai contra todos os instintos primais do ser humano, sugere uma sublimação com a delicadeza de uma sugestão, uma evolução espiritual que muitos – nesses tempos conflagrados – podem considerar demodê. Imaginedeixa uma pergunta pendente há meio século: ainda é tempo de sonhar?
Publicado no Correio Braziliense em 26 de setembro de 2021
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