Josimar Melo
Na primeira viagem da pandemia, a papelada necessária lembrou os rituais do passado
Passagem. Passaporte. Dinheiro.
Antigamente era assim. Estes eram os três elementos para o check list mental —ou mesmo dito em voz alta— que repetíamos como um mantra antes de ir para o aeroporto.
Parece outra era. E era. Porque, hoje, quase tudo isso pode estar num só lugar, no nosso computador de bolso, aquele aparelhinho que serve até para telefonar.
Mas, antes, cada coisa era uma coisa, fisicamente separada.
Passagem. Passaporte. Dinheiro.
A passagem de avião era um trambolho. Parecia um talão de cheques (opa, isto ainda existe?), um papelório em várias vias em carbono. As agências de viagem mais chiques nos mandavam a passagem acondicionada em carteiras de couro.
Dinheiro era também um item volumoso. Em priscas eras, não havia cartão de crédito internacional no Brasil. Só os muito ricos tinham contas —em geral ilegais— no exterior, e podiam usar cartões de crédito fora do país.
Os demais mortais, ao sair de casa, tinham que apalpar os bolsos para certificar-se de não estar esquecendo os maços de dólares ou os talões de cheques de viagem. Hoje, você pode viajar pagando contas com um cartão que nem precisa existir fisicamente, ou com meios de pagamento acionados pelo smartphone.
O terceiro item do check list foi o que menos mudou: o passaporte continua muito parecido, um livreto físico a ser carimbado (caramba, ainda existem carimbos!), embora em várias circunstâncias requeiram apenas um reconhecimento eletrônico através do chip que trazem acoplados.
Por que tantas reminiscências? Hoje em dia, compra-se a passagem aérea no celular, ali mesmo a armazenamos (junto com o cartão de embarque, após feito o check-in no mesmo aparelho), o dinheiro pode estar ali também, movimentado com aplicativos financeiros —tudo tão prático e rápido.
Pelo menos até minha primeira viagem depois do início da pandemia.
Neste momento, estou escrevendo de Antuérpia, na linda região de Flandres, na Bélgica. Vim participar das reuniões e atividades do prêmio The World's 50 Best Restaurants, espécie de Oscar da gastronomia cuja cerimônia acontece anualmente, cada vez num país (só não teve o ano passado, por causa da pandemia).
Consegui vir. Mas os trâmites da viagem me fizeram lembrar dos tempos remotos.
Ao investigar o melhor trajeto, comecei a constatar os obstáculos. Não há voos diretos do Brasil para a Bélgica. Então, seria necessária uma escala em algum país que aceitasse a presença de um pária que Bolsonaro nos tornou no mundo.
Escolhi a Espanha, que já aceita brasileiros com qualquer vacina. A Bélgica, por sua vez, abriu para brasileiros, mas desde que imunizados com as vacinas correntes na Europa, o que exclui a Coronavac, que é a que corre em minhas veias.
Foi, então, um périplo. Atestados em inglês e preenchimento de formulários para entrar na Espanha. Outros atestados e formulários para entrar na Bélgica —e, para este país, ainda por cima negociar com o Turismo local para acionar o cônsul em São Paulo, que então emitiu um documento declarando que, mesmo sem ter uma vacina aceita na Bélgica, eu estaria lá como uma pessoa especialmente qualificada que justificava a exceção para minha entrada (mas não me liberava de fazer o teste de Covid na chegada, perrengue adicional).
Nunca viajei com tanto papel na mão. Sim, porque, embora tivesse toda a documentação digitalizada no meu celular, achei seguro também imprimir toda a papelada.
Porque, sei lá, vai que acontecesse alguma pane planetária nos sistemas de internet, vai que o celular para de acessar minhas coisas na nuvem, vai que a turma dos Zuckerbergs da vida, tão eficientes para espionar e ganhar dinheiro, não é tão boa assim para gerir suas geringonças… parece impossível? Nunca se sabe!
Fonte: Folha de S. Paulo
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