quinta-feira, 16 de setembro de 2021

DECISÃO SUPREMA

DECISÃO SUPREMA
Sérgio Abranches

O Supremo Tribunal Federal retoma esta semana o julgamento sobre o marco temporal. É um dos mais importantes, do ponto de vista constitucional e dos direitos humanos fundamentais sobre os quais a mais alta corte do país se manifestou em tempos recentes. Não é uma questão de direito à propriedade, usucapião ou proteção estatal paternalista. É uma questão de direitos originários e direitos humanos fundamentais. Se há uma questão que diz respeito ao âmago do poder jurisdicional do STF, é esta que será julgada nos próximos dias.

A ultradireita representando grileiros, madereiros, mineiradores e outros elos da cadeia criminosa que ameaça a floresta amazônica e, para avançar sobre ela, matam, corrompem, ameaçam deseja estabelecer a Constituição de 1988 como marco inicial do direito dos indígenas à demarcação de suas terras. Desta forma, os indígenas só teriam direito à demarcação se estivessem ocupando a terra na data da promulgação da Constituição. Daí, "marco temporal".

O caso que servirá de base para a decisão de repercussão geral, isto é, que firma a jurisprudência a ser adotada em todos os tribunais, em julgamentos de casos similares, não tem relação com a Amazônia. Está em julgamento um recurso extraordinário com repercussão geral a um pedido de reintegração de posse do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ. Do ponto de vista antropológico e histórico não há dúvida de que o território em juízo atende a todas as características necessárias e suficientes para ser uma terra indígena demarcada, protegida e assegurada pelo Estado.

Mas, a repercussão geral, caso o STF decida contra o marco temporal, seguindo o voto do relator, ministro Edson Fachin, que considerou se tratar de um direito originário e inalienável, tem suma importância para a Amazônia. Lá estão povos originários sob risco extremo, inclusive de extermínio. Os povos isolados, que escolheram não ter contato com os povos aldeados e, mais ainda, com o povo não-indígena, são extremamente vulneráveis e correm risco iminente de extermínio. Não é exagero. Não são poucos os povos originários extintos pela violência não-indígena em nosso país, ao logo de toda nossa história e contemporaneamente.

Mas, afinal, o que está em questão? Os argumentos contrários às terras indígenas, encaram a demarcação como uma transferência de propriedade ilegítima, que se torna um obstáculo ao desenvolvimento econômico da região. Há duas falsidade nisso. A primeira, é que a demarcação não tem a ver com o direito à propriedade. A propriedade da terra continua sendo da União. Diz respeito ao direito de ter esta terra protegida, para que os povos que a ocupam originalmente possam viver em paz, de acordo com os padrões de suas culturas. É curioso que os não-indígenas não reconheçam o direito desses povos a permanecer nas terras onde sempre estiveram, antes mesmo da formação do estado nacional, mas aceitem sem problema que o usucapião permaneça em nossos códigos legais.

A segunda falsidade é que a demarcação crie um entrave ao desenvolvimento. Ao contrário, é uma garantia de desenvolvimento sustentado e sustentável. Os povos indígenas prestam ao proteger a floresta e parte de suas águas, presta inestimável serviço ambiental. Protegem a própria agricultura exportadora e de alta produtividade, que também acredita que sejam um entrave. A devastação da floresta amazônica levará à destruição de boa parte dessa agricultura no futuro próximo. As terras indígenas são as menos desmatadas da Amazônia, porque são a casa, o habitat original desses povos. Eles precisam da floresta para viver e sobreviver. A cosmogonia da maioria desses povos está intimamente ligada à floresta. Mas, nós também precisamos que ela fique de pé.

Mas, também pressupõe mais do que da defesa da cultura dos povos originários. Embora esta não seja uma questão trivial. O próprio Bolsonaro demonstra repetidamente o desejo de que os indígenas se incorporem à cultura urbana, como se este fosse o desejo deles. Não é. Eles querem é a proteção de sua cultura e se relacionar com a nossa cultura e tecnologia, com autonomia e total livre-arbítrio. E sabem fazer iso muito bem.

Trata-se de uma questão de direitos fundamentais do ser humano. O que está em jogo não é o direito à posse da terra, nem apenas o direito pleno à sua própria cultura. O que está em tela de juízo é o direito à vida. Sem a demarcação e a proteção das terras indígenas, a maoiria desses povos não sobreviverá. Trata-se portanto, de um direito originário ao seu habitat e do direito humano fundamental à vida.

Por isso, a decisão que a Suprema Corte está prestes a tomar, é talvez uma das mais importantes que estiveram em juízo de constitucionalidade nos últimos tempos. Espero sinceramente que as ministras e os ministros que compõem o plenário de nossa corte constitucional tenham noção da importância suprema desse julgamento. Ele define a fronteira entre a barbárie e a civilização. E, no caso, os bárbaros que precisam ser detidos são os que postulam pelo marco temporal.

Fonte: https://sergioabranches.com.br

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