DESCANSEM EM PAZ
Paulo Pestana
Ainda não saiu no obituário do jornal, mas certamente é porque alguém cochilou. Já devia ter sido publicado o falecimento e até missas de sétimo dia e de aniversários do Formador de Opinião. Sujeito fino, às vezes fidalgo, outras vezes metido a besta, era ele quem decidia as coisas por todos os outros.
Com o dom da ubiquidade ele podia ser visto em todos os ambientes derramando conceitos e definições, até que foi tragado: ninguém mais quer saber a opinião do Formador de Opinião. E para economizar no féretro, está indo com ele o Líder, que só sobrevive hoje no ambiente pouco recomendável dos partidos políticos.
Formavam uma dupla do barulho. Fizeram o que quiseram durante muitos anos ao interpretar os desejos coletivos do jeito que sempre acharam melhor; mais até, enquanto um se arvorava de condutor das massas o outro buscava moldá-las. E o mundo foi construído sob os alicerces dessas figuras amorfas, ainda que – ainda que metaforicamente – bem vestidas.
O Formador de Opinião era ouvido sempre que se precisava falar de qualquer coisa. Hoje, há quem tente substituí-lo pelo “especialista”, mas este não tem o menor glamour e anda cada vez mais desacreditado, tanto pelo uso excessivo, quanto pelo personalismo. Afinal, o Formador de Opinião nunca teve cara ou identidade claras.
O Líder nunca precisou argumentar. Bastava decidir unilateral e ditatorialmente o que era melhor para os outros e seguir em frente, que uma ruma de gente o acompanhava, sem muito argumentar, sem reclamar, repetindo frases feitas sob medida – como ovelhas que, mesmo balindo, seguem fielmente o pastor e seu cajado.
Aí o povo resolveu bagunçar tudo. Aqui, em nossa Pindorama, destruiu o mito do brasileiro cordial que sociólogos construíram por tantos anos, pôs abaixo a tese da índole pacífica que servia de esteio para tantas brutalidades oficiais. O brasileiro, de repente, virou um cidadão de voz ativa. Um rebelde de sandália de dedo; tipo Macunaíma (na foto, segundo Grande Otelo).
Não se sabe ainda no que isso vai dar. Neste primeiro momento, há um evidente desarranjo do que se convencionou chamar tecido social, com palpites demais, troca de ofensas e muito pouca inteligência. O filósofo italiano Umberto Eco foi um dos pioneiros na análise da internet: “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”.
Na verdade, quem frequenta bar sabe que nunca foi negada voz aos imbecis. Naquele ambiente anárquico, todo mundo tem direito a falar o que quer e muitas vezes a ouvir o que não quer, embora obedecendo ao regimento interno. E cada boteco tem o seu. O Silvio não gosta que se fale de mulher. “Isso só dá confusão”, repete.
Alguns são mais tolerantes. No bar do Bira do Paranoá ele deixava claro que só arrumava confusão com quem não tinha dinheiro para pagar a conta. Fechou, não se sabe se foi por causa do pendura.
Mas o problema é que as redes sociais aumentaram a confusão, acabaram com a liturgia do boteco, que sempre respeitou a hierarquia intelectual. Professor aposentado da Um, PhD, nosso amigo começou a descrever o ambiente político com polidez e alguma erudição, até que ouviu-se uma voz de fora da mesa. “Não #§¢*, professor. Tá errado isso aí!”
Era Baiano, o flanelinha, cheio de opinião.
Publicado no Correio Braziliense em 18 de julho de 2021
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