Pedro Hallal*
Os mais de 1 milhão deixados sem pai ou mãe pela pandemia não podem ser tratados como rebanho
A revista científica Lancet publicou um artigo conduzido por pesquisadores de diversos países sobre os órfãos da pandemia.
O artigo estima que a pandemia deixou órfãs mais de 1,1 milhão de crianças no mundo, sendo mais de 100 mil delas no Brasil. O país registrou a morte de 2,4 pais/mães para cada 1.000 crianças. É uma das maiores taxas de órfãos no mundo.
O impacto de longo prazo dessas perdas é difícil de quantificar, mas infelizmente inclui prejuízos afetivos, sociais, educacionais e na saúde mental. Lembro do meu tempo de escola. Uma ou duas vezes por ano acontecia de algum coleguinha perder um avô, avó ou até um dos pais. Normalmente, o coleguinha ficava uns dias sem vir à escola. Nas vésperas do seu retorno, a professora conversava com a turma, nos preparando para receber o retorno do coleguinha. Toda essa rede de apoio ajudava os colegas em luto a retomarem suas atividades.
Imagine uma geração inteira que não teve a chance de elaborar esse luto na companhia dos colegas e amigos.
É muito triste saber que muitas dessas crianças não estariam órfãs não fosse a vexatória postura anticiência adotada pelo governo brasileiro para lidar com a pandemia.
Tivéssemos ouvido a ciência, muitas dessas crianças poderiam comemorar os seus aniversários com seus pais.
Tivéssemos ouvido a ciência, muitas dessas crianças poderiam fazer a adaptação na escola na presença dos pais.
Tivéssemos ouvido a ciência, muitas dessas crianças poderiam brincar, poderiam viajar com seus pais.
Tivéssemos ouvido a ciência, muitas dessas crianças poderiam ser repreendidas, quando necessário, por seus pais.
Tivéssemos ouvido a ciência, muitas dessas crianças poderiam contar com o colo dos pais quando ficassem doentes.
Mesmo a pandemia não tendo acabado, é obrigatório que o Estado brasileiro planeje políticas para garantir o futuro dessas crianças. Os órfãos da pandemia não podem ser tratados como rebanho. Os sistemas de saúde e educação do Brasil devem estar preparados para lidar com essa geração.
*É epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil.
Fonte: Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário