O MEDO COMO REMÉDIO
Hélio Schwartsman
Numa epidemia, uma das principais linhas de defesa coletiva é o medo
Sempre que escrevo sobre a cloroquina, leitores simpáticos ao uso "off-label" do fármaco me contestam. Até aí, normal. Mas usam muito amiúde um argumento que, penso, merece reflexão. Dizem que a droga deve ser prescrita, entre outras razões, porque a ciência não oferece outro tratamento contra a moléstia.
A afirmação não é 100% verdadeira, mas deixemos passar. A base do argumento é a ideia de que os médicos precisam fazer alguma coisa, mesmo quando não há nenhum remédio efetivo disponível. Soa estranho, mas a tese não é absurda.
O efeito placebo, afinal, é um fenômeno real e poderoso. Numa série de afecções, o simples fato de o paciente julgar que está recebendo tratamento já tem impacto positivo para a cura.
Se os placebos são assim tão bacanas, por que a medicina não os utiliza mais? A discussão aqui se torna ética. Apesar de meus pendores consequencialistas, defendo uma medicina bem kantiana, em que a transparência nas comunicações e a autonomia do paciente possam se materializar em grau máximo.
Nesse paradigma, o médico, quando diretamente questionado, não tem direito de mentir nem pode impor ao paciente nenhuma terapia com a qual este não concorde (exceção feita a quadros de psicose). O uso do placebo nubla em algum grau a transparência.
Admito, porém, que meu paradigma não é universalizável. Há pacientes que preferem ser poupados de más notícias e de decisões difíceis. O bom médico é justamente aquele tem sensibilidade para perceber quanta informação o paciente quer receber e dispensá-la na dose exata.
Voltando à cloroquina, o efeito placebo funciona mais para moléstias com forte componente psicossomático e quase nada para doenças infecciosas, nas quais pode ser um risco. Numa epidemia, uma das principais linhas de defesa coletiva é o medo, que faz com que as pessoas evitem situações de contágio. Sugerir tratamentos ilusórios mina essa defesa.
Fonte: Folha de S.Paulo
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