sábado, 17 de julho de 2021

NUNCA A HUMANIDADE SENTIU TANTO MEDO

NUNCA A HUMANIDADE SENTIU TANTO MEDO
Eberth Vêncio

Quando você morrer, não apareça no meio da madrugada para puxar os meus pés. Isso não se faz. Eu durmo de pantufas. Sinto um frio ainda maior na alma. Tente com um pouco mais de ternura. O que deu em você? Não me interesso em saber se Deus é um homem velho, de barba branca, que conta piadas sobre os vivos, sentado numa nuvem de algodão-doce. Se ele acredita que existe vida antes da morte. Se consola passarinhos sempre que uma floresta é devastada pelo ser humano.

Não é da minha conta se tem futebol no céu. Se serei escalado para os próximos joguetes do destino. Se Elvis não viveu. Se é simplista o modus operandi como São Pedro fabrica chuvas. A chave da felicidade é não alimentar tantas expectativas. É morrer um dia de cada vez, como qualquer criatura viva que não seja pedra. No meio do caminho tinha um homem e ele vinha armado até os dentes, carregando um estandarte com o rosto ensanguentado de Cristo. Há algo de errado com as religiões. Há algo de podre no padre empertigado que, num flagrante ato de pobreza moral e ética, vende travesseiros magnéticos num programa de TV. A hipocrisia me dá insônia, mesmo que esteja deitado sobre penas de gansos.

Tenha pena de mim. Quando você partir, avoe, mas, não me deixe muito tempo a sós com raspas de lembrança. Por que não ensinam nas escolas como doer menos a morte de quem se ama? Não me diga sobre as coisas que deixam de existir do lado de lá. Pudim de leite condensado. Beatles. Feriado prolongado. Não seja tão cruel ao faltar comigo. Seria péssimo saber, por antecipação, que a visão panorâmica do céu é mais extasiante do que a visão anacrônica do mar. Que existem coisas mais felizes para se fazer na eternidade do que brincar com os próprios filhos na areia da praia.

Sei que não faz o menor sentido, mas, quando você desencarnar, desencane, reencarne em espetinhos de picanha nos churrascos coloridos do paraíso, em exercícios de autofagia. Flutue. Confraternize. Aglomere-se com condados de anjos travessos. Embriague o Bom Senhor com o néctar dos deuses. Nada mais apropriado para uma divindade. Arranque dele a olvidada verdade dos fatos. “Por que, afinal de contas, criaste o mundo, ó Pai?”. Se Deus fraquejar — à nossa imagem e semelhança —, se os seus olhos se inundarem como se inundam os olhos dos que temem a morte, faça uma selfie com ele. Grave um podcast. Engravide uma estrela com espermato-versos. Fuja na cauda de um cometa inconsequente. Meta-se nos remorsos secretos do Altíssimo. Envie os registros deste eterno, magistral encontro, por meio de um sonho premonitório, para que eu possa acordar convicto de que é preciso aprender a lidar com a morte com menos desespero, que a vida não passa de um delongado estado onírico do qual, mais cedo ou mais tarde, todos despertaremos. Todo mundo vai viver um dia, e daí?

Por fim, que eu sinta a sua presença, mesmo na mais fragorosa ausência, mais vívida do que o sol, mais lépida do que uma cachoeira, mais humano do que uma pedra no meio do caminho que sonha, um dia, possuir uma alma. Você, uma pessoa amada até os dentes, carregando nas costas o estandarte do amor inabalável.

Fonte: https://www.revistabula.com/secoes/cronicas/

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