Pedro Hallal
Cesar Victora recebeu o prêmio Sir Richard Doll 2021, a maior distinção da Epidemiologia mundial; e pasmem: não foi fazendo ciência de WhatsApp
O hábito de fumar data de 5.000 a.C., mas foi no século 16 que o tabaco se popularizou. Até a metade do século passado, a ciência pouco conhecia os riscos do tabagismo. Ao contrário, alguns médicos acreditavam que fumar fazia bem à saúde. Foi só no final da década de 1940 que estudos liderados pelo médico inglês Richard Doll sugeriram que o tabagismo fazia mal. Num artigo clássico da ciência mundial, publicado no British Medical Journal em 1950, Richard Doll e Bradford Hill mostraram uma forte relação entre fumo e câncer de pulmão.
Notem que, antes de a ciência demonstrar uma relação entre cigarro e câncer de pulmão, era perfeitamente aceitável que alguns profissionais acreditassem que o cigarro fazia bem para a saúde. Mas, depois da confirmação científica de que o cigarro mata, estimular o seu consumo é criminoso. Qualquer semelhança com a CPI da Covid-19 não é mera coincidência.
Existem hoje entre 10 milhões e 15 milhões de médicos no mundo. O fato de que 10 mil (0,08%) assinaram um manifesto pró-cloroquina não significa nada para a ciência. Diferentemente dos médicos que acreditavam que fumar fazia bem para a saúde, pois não havia confirmação científica, os médicos que insistem em defender a cloroquina no tratamento da Covid-19, depois das confirmações de sua ineficácia, não podem se defender pelo desconhecimento: é politicagem mesmo.
Em 1998, aos 85 anos, Richard Doll veio ao Brasil participar do 4º Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Neste evento, um pesquisador brasileiro, chamado Cesar Victora, tirou algumas fotos com o seu ídolo. Após o falecimento do doutor Doll, em 2005, a Associação Internacional de Epidemiologia resolveu conceder um prêmio em sua homenagem: a mais prestigiosa distinção da epidemiologia mundial. E em 2021, o vencedor do prêmio foi o brasileiro que, em 1998, tirou as fotos com seu ídolo.
O doutor Cesar Victora esteve envolvido nos primeiros estudos que mostraram que a amamentação exclusiva por seis meses reduzia o risco de doenças e mortes em crianças. Na época, a crença era de que, a partir dos 3 a 4 meses, o leite materno não era suficiente para os bebês seguirem se desenvolvendo. Pouco tempo depois, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar o leite materno como alimento exclusivo até os seis meses.
Qualquer leitor dessa coluna, no Brasil ou no mundo, que já tenha levado uma criança ao pediatra também já foi influenciado pelo trabalho do doutor Victora. As curvas de crescimento, que avaliam o estado nutricional de crianças, foram desenvolvidas em estudo liderado por ele, em parceria com a Organização Mundial da Saúde.
Mais recentemente, em parceria com pesquisadores da Universidade Harvard, o professor Victora mostrou os primeiros efeitos positivos da campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil, relatando uma queda pela metade das mortes em idosos de 80 anos ou mais.
Diferentemente de pesquisadores como o doutor Doll, que ficaram marcados por descobertas revolucionárias, o professor Victora ficará marcado como um pesquisador que conseguiu transformar as descobertas científicas em políticas de saúde. Estimar quantas crianças foram salvas pela amamentação exclusiva ou pela identificação precoce de desnutrição é uma tarefa científica complexa, mas posso garantir que a contagem não é na casa das centenas ou dos milhares. Milhões de vidas de crianças foram salvas pelo trabalho do doutor Cesar Victora.
Fonte: Folha de S. Paulo
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