SOCIEDADE DOS ÓRFÃOS (WOLFSKINDERS)
Por Aylê-Salassié e Alexandre F. Quintão*
… Faz lembrar o destino dos filhos dos revolucionários argentinos cujos país foram mortos na ditadura. A saga das “crianças lobo” (wolfskinder) da Prússia Oriental, perto de 25 mil sobreviventes errantes escondidos nas florestas da Prússia Oriental e na Lituânia. Eram conhecidas como “vokietukai” (“alemãezinhos”).
Difícil ter a coragem de Nietzsche para proclamar que “Deus está morto!”, ou mesmo para afirmar que ele não existe. Há outras opções. Mas, nada impede de perguntar: “Onde está Deus?” A menos que o ser humano esteja às portas de uma Gomorra, e não perceba. A dúvida aqui é se Deus está ao nosso redor, como ele pode tolerar tanto mal?!
Assusta a quantidade de crianças órfãs que a pandemia está gerando no mundo. A cada 13 mortes por coronavírus, uma perdeu um dos pais. Estudo publicado semana passada na revista de saúde coletiva Jama Pediatrics estima que entre 37 mil a 43 mil crianças podem ter perdido ao menos um dos pais para a Covid-19, somente nos Estados Unidos. Mas, o drama é planetário.
No Brasil, pesquisa realizada com o aval da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, até fevereiro deste ano, a quantidade de crianças de 0 a 17 anos que perdeu os pais aumentou de 17 % a 20, % em relação aos anos anteriores, quando nem se pensava em pandemia.
O Covid trouxe a desaceleração dos sistemas produtivos, o crescimento assustador da fome no mundo que, antes do flagelo dessa peste já atingia quase um bilhão de pessoas, a morte em massa para os idosos, e o aumento vertiginoso do número de crianças e jovens órfãos no mundo. Imagine o que está acontecendo na África.
Faz lembrar o destino dos filhos dos revolucionários argentinos cujos país foram mortos na ditadura. A saga das “crianças lobo” (wolfskinders) da Prússia Oriental, perto de 25 mil sobreviventes errantes escondidos nas florestas da Prússia Oriental e na Lituânia. Eram conhecidas como “vokietukai” (“alemãezinhos”). Ao passarem pelos vilarejos encontravam, em frente das portas das casas, tigelas de sopas deixadas por alguns cidadãos, enquanto outros traziam cachorros para espantá-los. São inúmeras e dramáticas as histórias. Entre elas, está a das duas meninas judias que perambularam miseráveis, sozinhas, pela Europa, sem encontrar um lar.
Levadas para abrigos na Lituânia e para os kolkhotz na Rússia, essas crianças eram obrigadas a trabalhar para cobrir o que consumiam, sem receber educação ou afeto. E aquelas que sequer nasceram: para salvar a vida de mulheres grávidas em Aushwitz, onde eram submetidas a todos os tipos de abusos, a ginecologista judia romena, Gisella Perl, induziu a centenas de aborto.
– Mas, Senhor! Como pode permitir isso?!…
Há quem entre lá no Instagram oferecendo esperança e solidariedade às crianças que remanescem sozinhas na pandemia. “Queremos te ajudar a descobrir o que Deus tem para você!” Ficamos com o pé atrás. Êpa! Que é isso?! Mas também não dá para esquecer aquelas histórias da segunda guerra, ou as crianças que perambulam abandonadas nas ruas das grandes cidades brasileiras. Religiosos tem ajudado a abrigá-las. Deus estaria com eles?
Não sei se acredita em Deus ou se confia é no Estado mas, em dúvida, o assustado senador médico Rogério Carvalho (PT-SE) apresentou um projeto de lei ao Congresso (PL 887/2021) destinado a assegurar uma pensão especifica para crianças e adolescentes, cujos pais foram vítimas do covid-19. Os programas sociais de governo não estão conseguindo conter essa miserabilidade extensiva que mata as crianças deste país. Não se comenta, mas a orfandade é crescente. O senador propõe que o Estado desembolse um salário mínimo para cada órfão até que atinja a maioridade.
Sem crianças sadias e educadas, o cenário futuro não é alentador. Não se trata apenas da pandemia em si, mas das consequências sociais que está gerando. Em princípio, as vítimas maiores são os idosos. Mas não é bem assim. As estatísticas mostram que houve um aumento de 52% nas mortes por Covid de pessoas com idade até 40 anos (3 a 4 adolescentes entre elas). Pensando sociologicamente, trata-se, no primeiro caso, de uma renovação pandêmica geracional e, no segundo, de uma redução da resistência às transformações que se quer na História.
Cabe uma reflexão: que mundo está sendo reservado para o homem pós pandêmico? Não adianta ficar insistindo em reajuste de salários e privilégios, na venda de automóveis de luxo, colchão que só os europeus tem, viagens baratas para paraísos já infectados e em políticos excessivamente contaminados pelas ideologias ou, o oposto, pela alienação.
A Terra precisa sobreviver. Não será Marte que salvará essa geração. Os wolfskinder estão aí. O projeto de lei vem em boa hora, mas essas crianças precisam, sobretudo, de atenção e afeto humano.
Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília
Alexandre Quintão -** Fisioterapeuta, pós-graduado em gerenciamento estratégico de projetos.
Fonte: chumbogordo.com.br
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