José Horta Manzano
Mofou, tem de jogar fora. Tem mesmo? Nem sempre. Há males que vêm para bem.
Na Idade Média, uma das atividades favoritas dos senhores feudais era a guerra. Por um sim, por um não, juntavam seus vassalos e partiam para medir forças com um outro senhor.
O século XVI já anunciava outros tempos, mas certos hábitos antigos continuavam arraigados. Conta uma lenda que, por aqueles tempos, um proprietário de terras de Sauternes, região de Bordeaux (França) foi à guerra. Como imaginava estar logo de volta, deixou ordens claras: fazia questão de que esperassem sua chegada para iniciar a vindima, a colheita das uvas.
As coisas não correram exatamente como pensava o senhor. A contenda se prolongou e não lhe foi possível voltar a tempo para a colheita. Intimidados, seus camponeses não ousaram tocar nas uvas enquanto o patrão não tivesse retornado.
Quando finalmente voltou a suas terras, o proprietário constatou que as uvas, ainda não apanhadas, estavam já meio mofadas. Perdido por perdido, decidiu que a vindima se fizesse assim mesmo.
As uvas foram colhidas, pisadas, e o processo de vinificação foi lançado. Alguns meses depois, a abertura da primeira barrica trouxe uma surpresa muito agradável: o vinho, habitualmente medíocre e bastante ácido, desta vez parecia um néctar feito no céu. Licoroso, docinho, frutado, um luxo!
Os proprietários da região logo se deram conta de que o fato de haver esperado que as uvas mofassem tinha provocado aquela magia. Empiricamente, adotaram a nova técnica.
Passaram-se os séculos, e se manteve a técnica de só colher as uvas depois de engrouvinharem, adquirindo aspecto de uva-passa. Os enólogos têm hoje explicação científica para a miraculosa transmutação de um vinho à toa em delícia rara. Descobriram que, sob certas condições de umidade e temperatura, colônias de fungos microscópicos do gênero Botrytis Cinerea podem se formar. O microclima da região de Sauternes se caracteriza justamente por nevoeiros úmidos no início do outono, um pouco antes da época da vindima.
Esse fungo, quando afeta outras frutas, é catastrófico: toda a colheita pode estar comprometida. No entanto, quando ataca as vinhas, faz que a água dos bagos se evapore, aumentando a concentração de açúcar. Provoca o chamado mofo nobre. O resultado é um vinho naturalmente doce e ligeiramente licoroso. A cor da bebida também se altera, tornando-se um elegante amarelo alaranjado. Ambré, como dizem os franceses.
Como acompanhamento de um queijo roquefort, um gole de Sauternes é uma dádiva. O sabor ligeiramente açucarado suaviza a aspereza do queijo de ovelha. É um fecho excelente para uma refeição de réveillon.
A consumir com moderação, naturalmente.
Fonte: brasildelonge.com/2012/12
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