segunda-feira, 30 de novembro de 2020

NUNCA É SÓ UMA PIADINHA

NUNCA É "SÓ" UMA PIADINHA
Martha Medeiros

Eu devia ter 10 anos. Estava lendo um gibi quando deparei com o seguinte desenho numa tirinha: garota linda e loira, com uma camiseta de mangas curtas, chega perto do rapaz que ela é a fim, abraça a si mesma e diz: “que frio!”. Ele então se aproxima dela e a envolve nos braços para esquentá-la – oba, começou o namoro. Uma outra garota, morena, gordinha, usando óculos de grau, olha a cena de longe, gosta da ideia e resolve tentar o mesmo truque de paquera. Se aproxima do garoto que é a fim, abraça a si mesma e diz: “que frio!”. O guri olha para ela com desprezo, joga um casaco e se afasta. Quá quá quá.

Na hora pensei: vai ser este o meu destino, afinal, não sou linda nem loira. Outras meninas devem ter pensado o mesmo: as de cabelo crespo, as narigudas, as pretas, as estrábicas, as dentuças, todas encantadoras a seu modo, mas que não correspondiam ao padrão linda e loira. Alguém morreu por causa disso? Era só uma brincadeira, ora. Eu sei, eu sei, tanto que virei a página e continuei lendo o gibi.

Virei a página? Mentira.

Anos depois, quando eu tinha idade para namorar, continuei me considerando fora do padrão e não apostava um níquel no meu poder de encantamento. Quando um garoto me tirava pra dançar, eu era aquela que olhava pra trás, achando que ele estava falando com alguém às minhas costas. Uma vez um cara gatíssimo chegou em mim numa festa e ficou conversando um tempo. Achei aquilo o máximo: ele, na verdade, estava querendo informações sobre uma amiga minha (linda e loira), mas ninguém estava escutando, parecia que ele estava a fim de mim, que felicidade! E uma vez o guri que eu gostava deixou um cartão embaixo da porta do meu edifício, e não tive a menor dúvida de que era coisa das minhas amigas, uma delas estava se fazendo passar por ele, claro.

Claro que não, mas eu enxergava alguma coisa na minha frente que não fosse a rejeição prometida?

Don´t cry for me, Brasil. A promessa não vingou e minha vida amorosa vai muito bem, obrigada, mas às vezes é preciso trazer à tona essas histórias, pois tem gente que reclama que as mulheres não estão deixando nada passar batido, nem mesmo uma piadinha. É chato, concordo, mas não tem outro jeito. O mundo mudou, e tem que mudar mais. Nunca é “só” uma piadinha, há sempre uma mensagem embutida que pode causar um estrago na autoestima de alguém, e sem autoestima as pessoas ou se acovardam, ou ficam muito agressivas, e nada disso é bom. Queremos uma sociedade saudável, leve, moderna? Eu quero.

Por isso, venho lembrar que temos mil defeitos, mas ser nem linda nem loira não é um deles, é apenas uma contingência, o que importa é a gente ser segura, ter a cabeça boa e levar nós mesmas o nosso casaco quando estiver frio, porque é isso que nos torna envolventes e merecedoras dos abraços mais calientes – quando der pra abraçar de novo, lógico.

Zero Hora: 29/08/20

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