A FUGA PELO ASSOBIO
Ruy Castro
O mundo se divide entre os que sabem assobiar e os que não sabem
Tenho sido acordado todo dia por um passarinho cujo assobio entra pela janela e faz fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu. Indagado, o porteiro João me informou que se trata do curió de seu colega do prédio ao lado. O bichinho, preto e de peito marrom, não tem um repertório muito variado. Acho até que só sabe assobiar aquela frase. Mesmo assim, ganha de mim por 1 a 0.
O mundo se divide entre os que sabem assobiar e os que não sabem, estes a grande maioria. Os que dominam a arte têm consciência de que são uma elite e tendem ao exibicionismo. Um cantor de ópera não interrompe um amigo numa conversa informal e dispara uma ária do "Rigoletto". Um trompetista não tira seu trompete do estojo e ataca de "O Voo do Besouro". Mas um assobiador, com falsa casualidade, começa a assobiar baixinho na nossa presença e, de repente, dá um show de vibratos, trêmolos e glissandos. Se isso já basta para nos esmagar, alguns ainda nos humilham com staccatos.
Imagine então os assobiadores profissionais, que gravavam discos. Os EUA tinham o impressionante Fred Lowery; o Brasil, o paulista William Fourneaut, o gaúcho Getúlio, o Assoviador, e o mineiro Silvio Silva, o Garoto Assobiador. Mas não se entusiasme --os dois verbos dizem a mesma coisa, e quem não sabe assobiar não sabe também assoviar.
Em "Sweeney Todd", grande musical de Stephen Sondheim, de 1979, em que um barbeiro degola seus clientes e estes se tornam o recheio das empadinhas vendidas por sua mulher, a heroína é uma jovem mantida presa pelo padrasto, que quer se casar com ela. Do lado de fora de sua janela gradeada, há uma gaiola com um passarinho que assobia o dia todo. Ela canta para ele: "Passarinho, ensina-me a cantar".
Farto de ver o mundo pela janela nesses intermináveis meses de quarentena, vou fazer como a personagem de Sondheim e pedir ao curió do vizinho que me ensine a assobiar.
Fonte: Folha de S. Paulo
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