quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O ANALISTA DE BAGÉ

OUTRA DO ANALISTA DE BAGÉ
Contam que o analista de Bagé não está muito contente com sua recepcionista Lindaura porque, segundo diz, “ela é como trigo: lindo de se vê mas só dá uma vez por ano”. Mesmo assim, não a substitui porque a Lindaura “é esperta que nem gringo de venda” e sabe o que fazer em qualquer situação. Embora goste de dizer que “mulher só serve pra três coisas e pras outras duas tem diarista”, o analista de Bagé reconhece que deve até sua vida a Lindaura. Como no caso da prenda de botas.

Pues diz que entrou uma mulher no consultório pisando mais firme que delegado novo em chineiro. Abriu a porta num trancaço, parou com pernas abertas e as mãos na cintura e gritou:

- Buenas!

O analista de Bagé ficou de pé num salto de assustar cusco e também gritou, mais grosso ainda:

- Buenas!

Ficaram os dois se estudando em silêncio. Aí ela levou a mão atrás e tirou uma faca do cinturão. O analista de Bagé pegou o facão, deu um chute no banquinho e recuou até a parede. Desafiou:

- Vem que aqui tem homem. E da fronteira!

Mas a mulher pegou um rolo de fumo de dentro da bombacha e uma palhinha de trás da orelha. Começou a picar o fumo, olhando para o analista por baixo das sobrancelhas grossas.

- Quero me analisá! – gritou.

- Pos se apeie e deite no divã.

Ela olhou para o divã coberto com um pelego. Depois voltou a encarar o analista. Acabou de enrolar o cigarro e botou num canto da boca. Disse:

- Não me deito pra homem nenhum.

- Pos de pé eu só analiso cavalo.

Novo silêncio enquanto os dois se estudavam. Ela apontou para a ponta do palheiro e disse:

- Tem fogo?

- Pra mim mulher que pita, se não é francesa, é pinguancha.

- Francesa eu não sou.

- Já vi pelo sotaque.

- E pinguancha é a tua mãe.

Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Ela acabou por cima, com um joelho sobre o peito do analista.

Ele perguntou:

- Como é que eu fico desse jeito, tchê?

- Um trauma.

- Pois toma outro.

E acertou um manetaço no lado da cabeça dela. Ela rolou para baixo do divã. Levantou com o divã e tudo e veio, agora para liquidar. Foi quando o laço da Lindaura cruzou os ares e a imobilizou. O analista de Bagé e a Lindaura amarraram a mulher juntos mas tiveram que chamar o zelador para colocá-la no divã. Sobravam trinta minutos para análise mas o analista cobrou os cinqüenta, de vingança, porque ainda estava com a paleta dolorida.

Depois que a mulher saiu, ainda ouvindo os passos das botas dela no corredor, o analista de Bagé, excitado com a briga, disse para a Lindaura:

- Te deita no divã.

Mas a Lindaura não transigiu:

- Só no Natal. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 233)

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