segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O FIM DO OUVIDO NA SEPARAÇÃO

Fabrício Carpinejar

O primeiro sentido que se perde com a separação é o ouvido. Não queira frequentar a casa de alguém na fossa. Ou levantar os fones de um recém separado de repente na rua. 

Nunca o sujeito em crise poderia ser convidado para ser DJ de uma festa. Nunca poderia ter uma caixa de som potente no carro. 

O separado é uma ameaça ao bom gosto. As músicas serão as mais aleatórias possíveis. Ele não tem mais nenhum critério. Suspendeu o seu gosto, fez greve de suas preferências, apagou o seu histórico no Spotify. Não está em condições de recusar um refrão. Pode ser Shakira, pode ser Fagner, pode ser Justin Biber, pode ser Jorge e Mateus. A playlist será esquizofrênica. 

O separado não escuta somente vozes, mas acredita em todas elas. Ele se vê entupido de emoção. Sua identidade foi desativada com o fim do romance. É possível, inclusive, que prepare uma imersão exclusivamente com o que o ex ou a ex gostava, numa espécie de reencarnação em vida, dando início a um processo masoquista mesmo, disposto a aumentar a projeção e a simbiose do sofrimento. 

É capaz de chorar com sertanejo, funk e até comercial de carro. Não há limites em sua breguice. Cantará letras que jamais imaginava saber de cor. Vai recorrer ao cancioneiro adormecido da infância. Pois sofrer é uma hipnose forçada. Alguns vão longe na memória e derramam uma lágrima entoando Escravos de Jó. 

Vai se sentir traduzido com peças incompatíveis. Só ele mesmo para achar conexão entre a sua dor e Não se Reprima, de Menudos. Mas localiza um nexo na falta de noção e sai pela sala criando um karaokê cadavérico com o controle da Sky. 

Pula da infame Manuela de Júlio Iglesias ao pior do Reino Unido, com Build, versão do The Housemartins. Reverte também as melodias: canções tristes são alegres, canções alegres são suicidas. 

Os tímpanos terminam sendo os mais maltratados com o divórcio. O sofredor escutará tudo o que vier pela frente, organizando um inacreditável brechó dos vinis. Sua personalidade é um balaio de CDs por R$ 9,99. 

Não reúne forças para resistir. Seu coração oscila drasticamente, uma frequência de rádio-pirata, prestes a naufragar no mais absoluto silêncio.

Fonte: Facebook

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